sexta-feira, 9 de agosto de 2013

FAMÍLIA TRADICIONAL OCIDENTAL E A CRIAÇÃO DE SEUS FILHOS: QUANDO A IDEIA DE FAMÍLIA SE AMPLIA

Por Cristiano Bodart

É muito comum a discussão se o modelo tradicional e ocidental de família é a mais adequada para a criação de filhos. Quando entra em cena os casais homoafetivos, pais separados, avós, etc, essa discussão torna-se ainda mais acalorada e divide opiniões. Não tenho a pretensão de impor uma opinião valorativa a respeito, antes, apresentar algumas reflexões iniciais, e em construção, em torno do tema.


A fim de iniciar as reflexões pretendidas acredito que seja importante pensarmos o que seria uma família nos moldes ocidentais tradicionais. Os mais apressados diria que é um casal, composto por pai e mãe e seu(s) filho(s). Essa definição não está errada, mas creio ser insuficiente para o objetivo aqui proposto. O conceito de família ocidental que temos está ligada a origem romana da palavra de raiz osca “fam”, que no latim é “famel”, que significa ao “pé da letra” escrava. Tal origem remete a ideia de
que família está associada aos domésticos, na época incluía-se aí os escravos, os quais vivem em um lar. Temos, então, dois outros conceitos envolvidos: doméstico e lar.


A palavra doméstico estar associada à ideia de domesticar (da mesma raiz), de impor controle, sanções e a “poda” da liberdade individual em detrimento as regras estabelecidas pelo chefe da família, outrora senhor. Os domésticos de hoje não são os escravos de ontem, porém a domesticação é praticada via “educação familiar”.


A palavra “lar” também tem origem romana. “Lares eram os deuses da família [...]. Os Lares de uma família eram as almas dos antepassados, que velavam por seus descendentes” (BULFINCH, 2001). Nota-se que existe na expressão um sentido claroreacionário, onde os antepassados estão sempre presente. Em contrapartida, os romanos acreditavam que os Lares estavam presentes no local onde se acendia o fogo para cozinhar e aquecer a família, daí o temo “lareira”. A lareira era o local de união dos membros do lar, onde se conversava, se aquecia, se contava histórias, transmitia-se ensinamentos, etc.


Exposto rapidamente e de forma simplória tais termos que cercam o conceito de família resta-nos levantar algumas questões como ponto de partida para uma reflexão: i) uma criança deve ser criada (outra palavra que está ligada ao servo ou ao escravo) em uma família ou em um lar? O que deve ser analisado é a capacidade de domesticar ou de agregar em torno de uma lareira? Ou seja, o que importa mais seria a existência de um modelo ocidental onde existe a figura do pai e da mãe ou o que importa é a existência de momentos de “agrupamento”, de conversas, de contar histórias, transmitia-se ensinamentos, etc. ii) Toda família tradicional é um lar? Iii) existe lares, onde há “calor” sem que exista a figura do pai ou da mãe ou dos dois?


Peço licença para expor uma breve opinião pessoal. Tenho visto casa que não são lares. Famílias compostas por senhor e servos. Por outro lado, avós que aquece a “alma” de seus netos, ainda que inexistentes a figura do pai e/ou da mãe. O que deve estar em jogo é o modelo de família ou a sua qualidade e capacidade em dar a criança um LAR? Casais homoafetivos, pais separados, avós, tios... o que importa é de fato, em minha opinião, se tal grupo possui “lareira”, ou seja, o local de união de seus membros, onde se conversa, se conta histórias, transmitia-se ensinamentos, onde olha-se nos olhos, rir-se juntos, sofre-se juntos, em fim, busca-se aquecer o “coração” um do outro. Crianças precisam disso...




Referência

BULFINCH, Thomas. O Livro de ouro da Mitologia: história de Deuses e Heróis. Trad. David Jardim Junior. 13ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

http://www.cafecomsociologia.com/2013/07/familia-tradicional-ocidental-e-criacao.html

A Família entre o Moderno e o Pós-Moderno

Liszt Vieira


A constituição da família nuclear, separada do grupo de parentesco mais amplo, assim como a separação do doméstico e da economia, foram produzidas pela Modernidade, vista a partir do paradigma da produção. Já a fragmentação contemporânea da família nuclear seria a decorrência não da Modernidade, mas da pós-modernidade.
A família moderna não poderia ficar imune ao impacto das transformações trazidas pela pós-modernidade. Anteriormente, o processo de modernização produzira a constituição da família nuclear. Trata-se, agora, de analisar as transformações operadas na família nuclear moderna pela pós-modernidade. É o que dá conta o excelente ensaio de Jeni Vaitsman. Seu livro baseia-se nas histórias de vida de 11 mulheres, formando casais, nascidos entre 1944 e 154 e vivendo no Rio de Janeiro: a geração que viveu o movimento antiautortário do final da década de 60, que marcaria algo como um momento de transição do moderno para o pós-moderno.

Sem perder de vista os processos macrossociais, ela faz um esforço bem sucedido em mostrar como as escolhas e ações individuais produzem esses mesmos processo. Nesse sentido, a fragmentação pós-moderna desaparece para dar lugar a uma totalidade bem construída e historicamente contextualizada. As transformações mais amplas passadas pela sociedade brasileira nas últimas décadas são articuladas às situações individuais, relatadas pelos entrevistados em três momentos de sua trajetória de vida: adolescência, primeiros casamentos/separações e novos casamentos/relacionamentos.

Contrapondo-se às teorias que vêem nos novos comportamentos uma "modernização" da família, para Jeni Vaitsman essas mudanças significam justamente o esgotamento do tipo moderno de casamento e família. Moderno porque legitimado por um discurso universalista sobre os papéis sexuais "corretos" no casamento e na família, baseado numa visão sobre uma natureza, ou essência, dos sexos. Na formação da sociedade moderna, a separação entre público e privado na família restringiu a individualidade feminina, que só podia manifestar sua essência enquanto mãe e esposa. Considera a ruptura da dicotomia entre público e privado pelas mulheres como parte das tendências pós-modernas de emergência do "outro", que desafiaram as "metanarrativas de legitimação", os discursos universalizantes normativos sobre os papéis sexuais no casamento e na família. Mas ao mesmo tempo, era essa submissão da individualidade que mantinha a estabilidade do casamento e da família. A maior igualdade entre os sexos levou à instabilidade do casamento e da família e ao surgimento de modelos alternativos de relacionamento, à medida em que as pessoas procuram reconstruir suas vidas afetivo-sexuais.

Em circunstâncias pós-modernas, os discursos sobre o casamento e a família não têm mais a pretensão da validade universal. Num contexto de maior igualdade entre os homens e mulheres, de mudanças extremamente rápidas, de fragmentação social e individual, as escolhas tornaram-se flexíveis e plurais. O que se apresenta como instável, caótico e desordenado na família - separações, novos casamentos, vários modelos ao longo da vida, filhos morando com pai ou com mãe e convivendo com meio-irmãos - nada mais é que a emergência de novos padrões, estruturalmente instáveis, contextuais, marcados pela contingência e pela heterogeneidade. Assim como em outras esferas - ciência, arte, filosofia etc. - nas relações de casamento e família estamos diante de práticas e discursos que não respondem mais a modelos unívocos, universais. O caos, o acaso, a aleatoriedade, também chegaram ao mundo das relações interpessoais.

Vemos, assim que, a autora utiliza conceitos pós-modernos que parecem adequar-se bem a seu objeto de estudo. Mas olha o pós-moderno com os óculos da modernidade, ainda com base na matriz da produção, buscando a construção de uma totalidade. Prefere apoiar-se em autores como David Harvey que analisa o pós-moderno de uma forma moderna fundado no paradigma marxista de produção: do fordismo à acumulação flexível. Mas se é possível explicar a constituição da família nuclear moderna a partir da produção, não seria possível encontrar correspondência entre a produção e a atual fragmentação da família nuclear nos centros urbanos.

Ao não assumir a radicalidade dos conceitos que utiliza, a autora nem sempre aproveita a potencialidade analítica dos conceitos pós-modernos, reduzidos por vezes à perspectiva unificadora da razão moderna. Flexíveis e Plurais, ma non troppo. o que se ganhou buscando uma totalidade provavelmente se perdeu em dimensões analíticas concretas. Mas o que ficou de fora poderá ser resgatado em futuras pesquisas que obrigatoriamente levarão em conta a importante contribuição de Jeni Vaitsman na análise das transformações contemporâneas na família conjugal moderna.
Liszt Vieira - Departamento de Sociologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Revista Ciência Hoje vol 19 nº 114 - outubro de 1995
http://www.lisztvieira.com.br/artigos-academicos-detalhe.php?id=15

A família e sua evolução como instituição social

A FAMÍLIA E SUA EVOLUÇÃO COMO INSTITUIÇÃO SOCIAL[1]

Maria Rosimeire Negreiros da Silva[2]

RESUMO: A família é uma das instituições mais antigas da humanidade e tem sua definição reestruturada conforme as mudanças de valores, costumes e ideais da sociedade, sendo que sua definição atual é totalmente diferente da definição de família trazida pelo Direito Romano. A conceituação de família sofreu variações no tempo e no espaço oferecendo um paradoxo para a sua compreensão. A família é o primeiro sistema social no qual o ser humano é inserido a partir de seu nascimento. A família era constituída através do matrimônio, de forma solene, pela união estável de conhecimento público e por a familiar monoparental com qualquer um dos pais, e seus descendentes. Nos dias de hoje o sistema familiar é um sistema aberto, quando saudável, e dinâmico. Ele mudou com o passar do tempo. Assim, o estudo teve como objetivo elucidar a família e sua evolução como instituição social, fundamentada na análise da literatura de autores já consagrados em forma de livros, artigos e revistas disponibilizados na Internet e livros publicados, visando o embasamento teórico acerca da temática exposta.

PALAVRAS-CHAVE: Família. Transformações. Sociedade.

ABSTRAC: The family is one of the oldest institutions of humanity and has restructured its definition as changes in values, customs and ideals of society, and its current setting is totally different from the definition of family brought by Roman law. The concept of family has suffered variations in time and space by offering a paradox for your understanding. The family is the first social system in which the human being is inserted from its birth. The family was formed through marriage, so solemn, the stable union of public knowledge and the single parent family with one of the parents, and their descendants. Today the family system is an open system, when healthy, and dynamic. He changed over time. Thus, the study aimed to elucidate the family and its evolution as a social institution based on the analysis of literature known authors in the form of books, articles and magazines available on the Internet and books, aimed at the theoretical background on the subject exposed.

KEYWORDS: Family. Transformations. Company.

INTRODUÇÃO

Para os gregos e romanos, a família era constituída pelo dever cívico e pela formação da prole como forma importante de desenvolvimento para seus exércitos, por este motivo, os meninos eram mais importante que as meninas. Em contrapartida os gregos tinham a família como união de pessoas, formada pelo cônjuge e seus descendentes que se reuniam para as realizações de cultos aos antepassados. Por isso era comum perpetuar os cultos aos antepassados, por tanto era proibido o celibato, no qual colocaria em risco o ritual de culto praticado.
Segundo Gontijo (2010), a família na sua conceituação jurídica surgiu na medida da civilização e, na evolução desta ocorreu conseqüente condicionamento dela ao matrimonio ritualístico ou religioso e, depois, principalmente no ocidente, ao casamento civil com a respectiva disciplina lega.
Para Lisboa (2004, p.42) ‘’família é a união de pessoas constituída pelo casamento civil, constituída informalmente pela união estável e pela relação monoparental‘’. Com a Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988, passou a ter a família como base da sociedade, dando-lhe especial proteção e reconhecimento a união estável e a família monoparental, conforme artigo 226 § 3ª.

Art. 226 A família base da sociedade tem especial proteção do Estado...
[...] § 3ª Para efeito da proteção do Estado é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

A palavra família significa pessoas aparentadas que vivem em geral na mesma casa, de principio o pai, a mãe e os filhos, ou ainda pessoas do mesmo sangue, acedentes, descendentes e os monoparentais. No direito pátrio, a família constitui-se, de pais e filhos unidos à parte do casamento, sendo este, regulamentado pelo Estado.
Em suma, família, em sentido lato, é uma entidade formada por todas as pessoas ligadas por vínculo de sangue, ou por afinidade, portanto, todas aquelas pessoas provindos de um tronco ancestral comum. E em sentido estrito, é um conjunto de pessoas compreendidas pelos pais ou um deles e sua prole.
Para Fincato (2010) a família e determinada na verdade pelas necessidades sociais de seus integrantes, não é só uma instituição de origem biológica, que busca apenas a procriação ordenada da espécie, mas também é uma entidade que busca garante o provimento de todos os envolvidos, sejam ‘parentes de sangue’, sejam apenas pessoas moram juntas em uma estrutura estável.
Atualmente, quando se fala a palavra família, visualiza-se um homem e uma mulher unidos através do casamento ou do desejo de conviverem como se casados fossem. Mas com as transformações que vem surgindo, o conceito de família também se transformou, ocorreu variação de acordo com a evolução das sociedades, seja cultural, política ou econômica. Contudo, o vínculo família não se dissolve, não morre não se derroga por nenhuma norma jurídica. Esse vínculo natural, biológico ou não, afetivo, não se rompe com a ruptura do casamento, dos laços conjugais. Justificando assim, a realização deste estudo.
O presente artigo tem como objetivo elucidar a família como instituição social e suas transformações. Para tanto se utilizou da pesquisa exploratória baseada na análise da literatura de autores já consagrados em forma de livros, artigos e revistas disponibilizados na Internet e livros publicados, visando o embasamento teórico acerca da temática exposta.

EVOLUÇÃO HISTÓRIA DA FAMÍLIA

A família surgiu como uma instituição formada a partir da organização política, cultural e econômica com as primeiras civilizações, pois achavam que ela era o fortalecimento do Estado como um todo. A família só perdeu este paradigma, quando passou a ter sua idéia substituída pela continuidade familiar, tendo como finalidade, a perpetuação da espécie humana, com isto o casamento tinha como objetivo a procriação.
Segundo Lisboa (2004, p.43), em Roma considerava-se a família:

Os descendentes de um tronco ancestral comum (gens); todos os sujeitos unidos por laços de parentesco, inclusive por afinidade; os cônjuges e seus descendentes, mesmo os de gerações posteriores à dos filhos; os cônjuges e, tão somente, os seus filhos menores; o grupo de pessoas que vivia sobre o sistema de economia comum, tendo como moradia o mesmo ligar, em outras palavras, um conjunto de pessoas em um acervo de bens; e o grupo de pessoas que se reunia diariamente em torno do altar doméstico, para cultuar os deuses, á semelhança do modelo grego.

As antigas instituições familiares eram patriarcais, onde a família era regida pela autoridade do pai. Em alguns lugares do mundo houve consideráveis poder da mulher sobre a família, o chamado poder matriarcal, largamente visto em tribos africanas, porém, em curto período de tempo.
No direito romano, o laço existente entre os diversos membros da família tinha então uma importância política, econômica, social e religiosa. Com o tempo, a família perdeu diversas das suas funções, deixando de ser uma unidade política, econômica, religiosa e jurisdicional, mas o parentesco continuou a ter importantes efeitos legais.
Com a Revolução Industrial, a mulher que somente trabalhava no lar, ajudando o marido nos trabalhos manuais, saiu de casa para trabalhar nas Indústrias, assim como os filhos, posteriormente tirando assim o poder que o pai exercia sobre eles, mudando assim a estrutura patriarcal, que as famílias tinham.
Com a evolução da formação da família, passando de instrumento para o Estado para a perpetuação da espécie através do amor, necessário foi à regulamentação do direito de família, através da renovação das relações familiares e da perda dos poderes e direito dos chefes da família sobres seus integrantes, ou seja, o poder de decisão do homem sobre a mulher e os filhos passou a ser mais limitado.
O tempo contribuiu para a libertação social da mulher, que trouxe com ela grandes mudanças nas relações familiares, tais como: a aceitação das uniões informais, a possibilidade da extinção do casamento, e a maior proteção a mulher e os filhos.
No Brasil, até a Constituição Federal de 1988, a única entidade familiar legalmente protegida pelo Estado era constituída através do casamento. Após reconhecimento da família monoparental e da união estável, o Código Civil, também, passou a regular seus direitos e deveres, sendo estes, subdivididos em direito parental, convencional, patrimonial e assistencial.
Segundo Diniz (2008, p.14) a família possui características próprias, como:

a) Caráter biológico, pois a família é por excelência o agrupamento natural, onde o individuo nasce, cresce, numa família até casar-se e constituir sua própria família [...]
b) Caráter psicológico, em razão de possuir a família um elemento espiritual unindo os componentes do grupo, que é o amor familiar.
c) Caráter econômico, por ser a família o grupo dentro do qual o homem e a mulher com auxílio mutuam e o conforto afetivo, se munem de elementos imprescindíveis a suas realizações materiais, intelectual e espiritual.
d) Caráter religioso, uma vez que, como instituição, a família é um ser eminentemente ético ou moral [...]
e) Caráter político, por ser a família a célula da sociedade, (CF, art.226), dela nasce o Estado [...], impondo sanções, aos que transgride as obrigações imposta ao convívio familiar.
f) Caráter jurídico, por ter a família sua estrutura orgânica regulada por normas jurídicas, cujo conjunto constitui o direito de família.

As mudanças socioeconômicas constantemente repersonalizam as relações familiares, contrapondo-se cada vez mais aquela da sociedade pré-industrial.
A conceituação de família como todo fenômeno social sofrem variações no tempo e no espaço oferecendo um paradoxo para a sua compreensão. Podem existir diversos significados para a palavra família.

A FAMÍLIA NA ATUALIDADE

A família vem sendo considerada uma instituição social, preenchendo funções históricas e exercendo influências poderosas sobre o ser humano.
De acordo com o art. 1.723, do Código Civil “é reconhecida como entidade familiar à união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
Taylor, (2002, p.398) pontua que “a conscientização da família como uma instituição social importante esteve presente ao longo de toda a história. Entretanto, apenas no século XX, foi reconhecida como um sistema e estudada como tal”
Osório (1996, p.14) cita que: “a família é a instituição mais antiga da sociedade, é o espaço que proporciona a satisfação das necessidades básicas das pessoas e, simultaneamente, o desenvolvimento da personalidade e da socialização”. De acordo com o autor a família pode ser considerada de diferentes formas: “como a morada do ser humano, porto seguro, pessoas que vivem juntas e tantas outras coisas”.
Contudo, é possível descrever as várias estruturas ou modalidades assumidas pela família através dos tempos, mas não as definir ou encontrar algum elemento comum a todas as formas com que apresenta este agrupamento humano.
Para Althoff (2001, p. 147) família é:

(...) a família é uma unidade constante pela troca de informação com os sistemas extra familiares. As ações de cada um de seus membros são orientadas pelas características intrínsecas ao próprio sistema familiar, mas podem mudar diante das necessidades e das preocupações extremas.

Nesse sentido a família de hoje já não é a família de outrora; visto que passou por profundas transformações no decorrer das últimas décadas ocorridas na sociedade. Atualmente há uma enorme alteração das estruturas familiares, monoparentais e a diminuição do número de filhos. Como conseqüência destas transformações rompeu-se uma série de valores e idéias. As transições desse paradigma transformaram o pensamento e valores formadores da realidade do contexto familiar gerando mudanças quanto à sua natureza, função, composição e concepção.
Para compreender as concepções de família na atualidade é necessário resgatar as formas de organização familiares.
Na concepção de Magalhães (2002, p. 41-41) as diversas espécies de família são:

A família celular ou nuclear: aquela formada pelo casamento, estabelecida por laços de consangüinidade. Cresce na medida em que surgem os filhos e diminui na medida em que estes constituem novas famílias.
A família tribal: comum nos primórdios da humanidade estabelecia-se a partir da família celular e era mantida pela autoridade de um patriarca, de maneira que as diversas unidades que iam se formando na tribo a ela continuavam ligadas por laços genealógicos e sob a autoridade de uma única pessoa.
A família romana: possuía uma estrutura semelhante à tribal, porém menos numerosa. Os membros da família estavam sujeitos ao paterfamílias. Falecendo o pater famílias, os filli familiae podiam constituir as suas próprias famílias.
A família contemporânea: se inicia com o casal e os filhos estendem-se para a colateralidade, formando ramos comuns.
A família monoparental: é uma novidade surgida com a Constituição de 1988, descrita no art. 226, § 4º, que reconhece como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descentes.

Magalhães (2000, p.42) refere-se ainda aos vários tipos de sistema familiar existentes:

Patriarcal: subordinada a um chefe do sexo masculino, admitindo-se a poligamia.
Matriarcal: rara ser encontrada, em que uma mulher se consorcia com vários homens, formando uma comunidade familiar.
Endogâmica: quando os casamentos se realizam na mesma comunidade à qual pertencem os noivos.
Exogâmica: quando se realizam entre comunidades variadas.

Percebe-se que é extenso o conceito de família, não se limita a comunidade formada pelo casal e filhos. Estende-se aos ascendentes, descendentes, colaterais até o sexto grau, aos fins e ao parentesco civil.
Perroni e Costa (2008, p. 2) reforçam o conceito de família:

A idéia de que é possível apenas um único modelo de família torna-se fonte geradora de preconceitos e estigmatizações a qualquer outro modelo que fuja deste, que é considerado o correto. Hoje se conhece outros tipos de família além das tradicionais como a família homoafetiva[3], bem como a homoparentalidade. O vínculo afetivo que se dá entre pessoas do mesmo sexo vem propor um modelo alternativo dentro dos novos arranjos, emergindo a “família homoparental”. Embora seus componentes possam tê-la individualmente, tais uniões não possuam capacidade procriativa no sentido biológico.

A família segue novos aspectos obedecendo aos princípios da afetividade e estabilidade. Reconhecer a família formada pela união estável somente entre homem e mulher ou da união homoafetiva não dificulta a proteção da relação como entidade familiar.
Na ótica de Perroni e Costa (2008, p.2) “a família homoparental se autodesigna homossexual, é o pai ou mãe de, no mínimo, uma criança de acordo com Associação de Pais e Futuros Pais, Gays e Lésbicas – APGL.” Para o autor esse termo, “família homoparental”, também é objeto de muitas polêmicas, pois, além de colocar em foco a orientação sexual dos pais/mães, é associado ao cuidado dos filhos. Essa associação homossexualidade dos pais/mães e cuidado com os filhos, ainda cheia de preconceito, visto que homens e mulheres homossexuais podem ser ou não bons pais/mães, da mesma forma que homens e mulheres heterossexuais.
Dessa maneira, o casamento não é mais a única forma de constituição familiar, abre-se caminho para o reconhecimento de outras formas, aí incluída a união homoafetiva. Sendo compreensível que hoje para existir a família independe da diversidade de sexos. As necessidades para a configuração de uma relação familiar é ter por base o afeto que pode conferir o status de família.
Diante de tanta diversidade, fica difícil conceituar família na atualidade. Portanto, a conscientização de que independente de que tipo de família seja constituído, a função parental, a função materna ou paterna poderá ser desempenhada por qualquer dos parceiros, mesmo quando exercida de forma mais marcante por um ou outro dos membros, independente do tipo de família que foi constituído.
Várias têm sido as mudanças sociais nas sociedades ocidentalizadas que têm contribuído para o surgimento de novas formas de família: a entrada da mulher no mercado de trabalho, o aumento exponencial do fenômeno divórcio, o progresso cientifico as novas exigências e a maior competitividade a nível laboral.
Mesmo com as inúmeras transformações sofridas em sua configuração, a família ainda representa uma das estruturas mais importantes da sociedade. Atualmente, as mais diversas formas de convívio passaram a ser aceitas pela sociedade, e as pessoas podem constituir a família da forma que lhes convier, não estando mais limitadas ao casamento para ser reconhecidas como família (GOMES, 2011).
É preciso achar o elemento que autorize reconhecer a origem do relacionamento das pessoas. Atualmente, para a configuração de família, não há mais sequer a necessidade de existir um casal, pois a família não está mais unicamente ligada à finalidade procriativa.
A família é organização subjetiva fundamental para a construção individual da felicidade. Ao contrário, é o resultado das transformações sociais.

CONCLUSÃO

As transformações do conceito família trouxeram maior liberdade e igualdade entre os membros, fundamentado nos princípios da dignidade humana, que consiste na segurança dos direitos personalíssimo de cada membro da família, bem como de suas necessidades materiais.
Permitiram uma evolução como instituição social nas relações familiares na busca do atendimento aos interesses mais valiosos das pessoas humanas, como a lealdade, afeto, confiança, respeito, solidariedade e amor.
As relações e sentimentos independem de termos e conceitos, não importa se família monoparental, homoparental, ou outro termo que seja. Os laços existentes entre os indivíduos, o afeto é o que constitui a família.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTHOFF, C.R. Delineando uma abordagem teórica sobre o processo de conviver em família. Rev Maringá; 26(1): 125-43, 2001.

DINIZ, Maria Helena. Direito de Família. 5º v. 23 ed. rev. atual e ampl. de acordo com a reforma do CPC e com o projeto de Lei nº 276/2007.São Paulo: Saraiva, 2008.

FINCATO, Rafael Pires. Evolução do conceito de família.Disponível em:HTTP://saudades-de-mim.blogspot.com/2007/08/evoluo-do-conceito-de-familia.html. Acesso em 11 de fevereiro de 2012.

GOMES, Daniela Vasconcellos. A proteção jurídica das diversas formas de família. Jornal Informante. Farroupilha – RS, v. 184, p. 05-05, 26 ago. 2011. Acesso em 11 de fevereiro de 2012.

GONTIJO, Segismundo. A família em mutação. Disponível em: http://www.Miniweb.com.br/ Cidadania. Aceso em 11 fevereiro 2012.

LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. Direito de Família e das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 42:43, 2004.

MAGALHÃES, R.R. Instituições de direito de família. Leme-SP: Editora de Direito, 2000.

OSÓRIO, L.C. Família hoje. Porto Alegre (RS): Artes Médicas; 1996.

http://www.soartigos.com/artigo/15445/A-FAMILIA-E-SUA--EVOLUCAO-COMO-INTITUICAO-SOCIAL/

Direito de Família: Plano de Ensino

Estou construindo um Plano de Ensino para o Direito de Família. Estou aberto a sugestões.

Direito Civil - Família - 2013/2
Curso: Direito
Período: 8
Professor(es): José Benedito de Barros
Carga Horária: 72 h
Ano/Semestre: 2013/2

Objetivo Geral
Formar profissionais aptos a viver e defender os valores e princípios gerais do direito, objetivando a justiça, a ética, a moral, a equidade, a igualdade e a liberdade; assumir cargos técnicos jurídicos nas diversas carreiras públicas ou privadas, sensíveis aos movimentos sociais e à dinâmica do direito, com raciocínio jurídico e reflexão crítica; desenvolver a reflexão científica motivadora da produção de conhecimentos jurídicos ensejadores de novos processos de criação do direito; contribuir criativamente para o desenvolvimento da sociedade tocantinense e brasileira, procurando adaptar inovações jurídico-tecnológicas, às necessidades e exigências do seu desenvolvimento e expansão pessoal e comunitária.

Objetivos Específicos:

Utilizar de reflexão crítica na busca dos fundamentos e memorização dos conteúdos do direito da família e sua interdisciplinaridade.
Desenvolver o raciocínio jurídico e os conhecimentos da disciplina de Direito de Família , identificando a aplicação do seu conteúdo à realidade social, jurídica.
Utilizar de reflexão crítica na busca dos fundamentos e memorização dos conteúdos do direito da família e sua interdisciplinaridade.
Desenvolver o raciocínio jurídico e os conhecimentos da disciplina de Direito de Família , identificando a aplicação do seu conteúdo à realidade social, jurídica

Ementa
Direito de Família. Esponsais ou Promessa de Casamento. Casamento. Habilitação. Parentesco. Impedimentos Matrimoniais. Ineficácia do Casamento. Celebração e Prova do Casamento. Efeitos Jurídicos do Casamento. Regime de Bens. União Estável. Filiação. Dissolução da Sociedade Conjugal. Poder Familiar. Alimentos. Tutela, curatela e ausência.
01: ASPECTOS TRANSDISCIPLINARES DO DIREITO DE FAMÍLIA
1.1. A Família: Origem, evolução histórica e concepção moderna.
1.2. As diversas formas de constituição de uma Família: casamento, união estável, união de pessoas do mesmo sexo e família monoparental.
1.3. Histórico da Legislação do Direito de Família.
1.4. Casos atuais.

02: ESPONSAIS OU PROMESSA DE CASAMENTO
2.1. Conceito.
2.2. Efeitos da ruptura do casamento no Direito Brasileiro.

03: CASAMENTO
3.1. Conceito.
3.2. Breve histórico.
3.3. Natureza jurídica.
3.4. Caracteres e fins essenciais.
3.5. Capacidade para o casamento.
3.6. Casamento civil e religioso.

04: HABILITAÇÃO
4.1. Requisitos e pressupostos matrimoniais.
4.2. Processo de habilitação.

05: IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS
5.1. Conceito.
5.2. Análise dos impedimentos matrimoniais.
5.3. Oposição dos impedimentos matrimoniais.
5.4. Causas suspensivas do casamento.

06: CELEBRAÇÃO DO CASAMENTO
6.1. Solenidades.
6.2. Casamento nuncupativo.
6.3. Casamento por procuração.
6.4. Casamento religioso com efeitos civis.
6.5. Casamento perante Autoridade Diplomática ou Consular.
6.6. Prova do casamento realizado no exterior.

07: EFEITOS JURÍDICOS DO CASAMENTO
7.1. Efeitos jurídicos do casamento em geral.
7.2. Efeitos patrimoniais.
7.3. Deveres de ambos os cônjuges.
7.4. Casos de outorga uxória, outorga marital e suprimento judicial.

08: INEFICÁCIA DO CASAMENTO
8.1. Distinção entre casamento nulo e anulável.
8.2. Titularidade para a ação de nulidade absoluta e para a ação de nulidade relativa do casamento.
8.3. Casamento putativo.
8.4. Casamento nulo: hipóteses de nulidade absoluta, efeitos da boa-fé e da má-fé dos cônjuges no casamento nulo.
8.5. Casamento anulável: hipóteses de nulidade relativa, efeitos da boa-fé e da má-fé dos cônjuges no casamento anulável, prazos para a propositura da ação de anulação do casamento.

09: REGIME DE BENS
9.1. Conceito.
9.2. Regime legal.
9.3. Regime obrigatório da separação total de bens.
9.4. Pacto antenupcial: estipulações permitidas, estipulações proibidas, formalidades e eficácia.
9.5. Doações antenupciais, doações realizadas pelos próprios cônjuges e doações realizadas por terceiros.
9.6. Mutabilidade do regime de bens.
9.7. Regime da Comunhão Parcial de Bens: bens comuns, bens particulares, aqüestos, administração doméstica e patrimonial.
9.8. Regime da Comunhão Universal de Bens: bens comuns, bens incomunicáveis, bens reservados da mulher que exerce profissão lucrativa antes da Constituição Federal de 1988, administração doméstica e patrimonial.
9.9. Regime da Separação Total de Bens: espécies, bens comuns e bens particulares, aqüestos, administração doméstica e patrimonial.
9.10. Regime da Participação Final nos Aqüestos: bens comuns e bens particulares, administração doméstica e patrimonial.
9.11. Bem de Família.

10: UNIÃO ESTÁVEL
10.1. Concubina, companheira, convivente: distinções na jurisprudência e na legislação.
10.2. Pressupostos de existência da União Estável e caracterização do Concubinato.
10.3. Efeitos da União Estável e os efeitos do Concubinato.
10.4. Uso do nome do companheiro pela companheira/convivente.
10.5. As Leis 8.971/94; 9.278/96 e o Código Civil de 2002.
10.6. Dissolução da União Estável.
10.7. Análise das Súmulas 380 e 382 do STF.
10.8. Análise jurisprudencial.

11: PARENTESCO
11.1. Parentesco em linha reta e em linha colateral.
11.2. Sistema de contagem dos graus.
11.3. Parentesco por consangüinidade, por afinidade e civil.
11.4. Parentesco havido do casamento e não havido do casamento.

12: FILIAÇÃO
12.1. Espécies.
12.2. Filiação havida do casamento, reconhecimento de filho não havido do casamento, investigação de paternidade e investigação de maternidade.
12.3. Filiação sócioafetiva.
12.4. Adoção: modalidades, requisitos, legislação aplicável, efeitos, proibições, adoções por homossexuais.
12.5. Inseminação artificial: homóloga e heteróloga.

13: PODER FAMILIAR
13.1. Conceito.
13.2. Do Pátrio Poder ao Poder Familiar.
13.3. Titulares e pessoas sujeitas ao Poder Familiar.
13.4. Do exercício do Poder Familiar.
13.5. Do usufruto e da administração dos bens dos filhos menores.
13.6. Dano moral oriundo do abandono paterno-filial.

14: DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE CONJUGAL
14.1. Distinção entre Separação Judicial e Divórcio.
14.2. Separação de Corpos.
14.3. Separação Judicial Consensual e Separação Judicial Litigiosa.
14.4. Partilha de Bens: forma e momento da realização.
14.5. Efeitos quanto à pessoa dos filhos.
14.6. Restabelecimento da Sociedade Conjugal.
14.7. Divórcio: consensual e litigioso.
14.8. Conversão da Separação Judicial em Divórcio: contagem do prazo.
14.9. Divórcio Direto.

15: ALIMENTOS
15.1. Natureza jurídica.
15.2. Pressupostos para a sua concessão.
15.3. Modalidades.
15.4. Viabilidade.
15.5. Inexecução da prestação alimentícia

16 ALIMENTOS GRAVÍDICOS

17: TUTELA
17.1. Modalidades.
17.2. Pessoas sujeitas à Tutela.
17.3. Exercício da Tutela.
17.4. Bens do Tutelado.
17.5. Prestação de contas.
17.6. Cessação da Tutela.

18: CURATELA
18.1. Modalidades.
18.2. Interditos.
18.3. Curatela do nascituro e do enfermo ou portador de deficiência física.
18.4. Exercício da Curatela.

19: AUSÊNCIA
19.1. Conceito de Ausência. Curatela dos Ausentes.
19.2. Curadoria dos bens do Ausente.
19.3. Sucessão provisória do Ausente.
19.4. Sucessão definitiva do Ausente.

20: GUARDA
20.1. Conceito. Distinções entre Guarda e Tutela.
20.2. Critérios de determinação da Guarda
20.3. Modalidades da Guarda: comum, de fato, jurídica derivada, provisória, definitiva, por terceiros, conjunta, alternada, dividida, compartilhada.
20.4. Modificabilidade da Guarda.
20.5. Cisão da Guarda.
20.6. Vantagens e desvantagens da Guarda Compartilhada.

Metodologia
Será utilizada a Metodologia da Problematização, partindo o aprendizado de análise de casos ou situações problemas, valorizando o conhecimento prévio do acadêmico, para então, por meio de aulas expositivas-dialogadas fundadas na legislação, doutrina e entendimento dos tribunais, chegarmos aos conceitos fundamentais para a resolução das problemáticas apresentadas.

O conhecimento transmitido em sala de aula deve ter uma conexão quase que imediata com a sua utilização prática. O conhecimento teórico-doutrinário estará ligado à amostragem dos fatos reais e a utilização dos conhecimentos jurídicos para compreendê-los. Desta forma, estimulando-se continuamente debates sobre os aspectos práticos da disciplina, procurar-se-á despertar no acadêmico o senso crítico tanto quanto à ordem política que prioriza a abordagem puramente tecnocrata quanto aos elementos teóricos do discurso do corpo doutrinário.

Aulas Teóricas: aulas dialogadas e dialetizadas com a utilização de recursos áudios-visuais (quadro-branco e data-show). Utilização do método expositivo, no qual o assunto é apresentado ao acadêmico de forma lógica e estruturada através de exemplos práticos e atuais, podendo haver contestação, discussão e apresentação de novos exemplos bem como questionamentos pertinentes ao tema desenvolvido. Apresentação de trabalhos escritos e em grupo em forma de seminário, com exposição de temas a fim de que os alunos pesquisem e formem sua concepção junto ao assunto apresentado.

1) Avaliação teórica – Prova objetiva sem consulta, abrangendo os assuntos abordados durante este semestre, com peso correspondendo a 10,0 pontos.

2) Avaliação teórica - Prova discursiva com consulta à legislação, abrangendo os assuntos abordados durante este semestre, com peso correspondendo a 7.0 pontos.

3) Trabalhos avaliativos: 3.0 pontos
3.1. Trabalhos: duas dissertações sobre tema de direito obrigacional.
3.2. Utilização das normas científicas da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT.
3.3. Extensão dos trabalhos: 6 a 10 páginas.
3.4. Os cinco melhores trabalhos, após revisão, serão publicados no blog www.profjosebenedito.blogspot.com em co-autoria com o professor, com direito a um bônus de 1,0 (um) ponto na média final.

Cálculo da média Semestral das avaliações 1+ (2+3)/2.

4) Avaliação final para quem não atingir a média (consoante normas da instituição)
Bibliografia Básica
BRASIL. CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO, 2002.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro : Direito de Família. São Paulo : Saraiva, 2011.
GAGLIANO, Pablo S.; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil : Direito de Família. São Paulo : Saraiva, 2011.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito de Família: Saraiva, 2003.
VENOSA, Silvio S. Curso Direito Civil – Direito de Familia. São Paulo; Editora Atlas: 2012
Complementar
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Direito de Família. Rio de Janeiro : Forense, 2011
Wald Arnold. O Novo Direito de Família. São Paulo : RT, 2011.

http://www.stf.jus.br
http://www.stj.jus.br
www.tjsp.jus.br
http://www.tjrs.jus.br
www.trf3.jus.br
http://www.conjur.com.br/
http://www.jurisway.org.br/
http://ulbra-to.br/cursos/Direito/2012/2/turmas/3019/impressao-plano

Direito das Obrigações I

Introdução ao Direito das Obrigações

(Resumo de três textos: Direito das Obrigações, de M. G. Milhoranza; Análise histórica do direito das obrigações, de Bruna Lyra Duque; e Direito das Obrigações, de C. R. Gonçalves.)

Direito das Obrigações

Mariângela Guerreiro Milhoranza

1 CONCEITO E AMPLITUDE DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES


Em sentido amplo, o significado de obrigação é o de compromisso, dever, tarefa. A palavra vem do latim obligatio. A obrigação se identifica com deveres morais, sociais, religiosos e jurídicos.
O Direito das Obrigações é o ramo do direito civil que tem por fim contrapesar as relações entre credores e devedores. Consiste num complexo de normas que regem relações jurídicas de ordem patrimonial que têm por objeto as prestações (dar, restituir, fazer e não fazer) cumpridas por um sujeito em proveito de outro. Conforme os ensinamentos de Maria Helena Diniz, balizada em Clóvis Beviláqua, “o direito das obrigações consiste num complexo de normas que regem relações jurídicas de ordem patrimonial, que têm por objeto prestações de um sujeito em proveito de outro.”

1.1 DISTINÇÃO ENTRE DIREITOS OBRIGACIONAIS E DIREITOS REAIS
a) Quanto ao sujeito: Nos direitos obrigacionais pode haver pluralidade de sujeitos. Como exemplo da pluralidade de sujeitos nos direitos obrigacionais, trazemos a solidariedade que tanto pode ser ativa (arts. 267 a 274 do CC) ou passiva (arts. 275 a 285 do CC). Nos direitos reais, de acordo com a escola clássica, há somente o sujeito ativo; já de acordo com as teorias dualistas existem dois sujeitos, ativo e passivo, sendo o sujeito passivo a comunidade como um todo.
b) Quanto ao objeto: O objeto do direito obrigacional é sempre uma prestação do devedor, enquanto que o objeto do direito real é a coisa certa e determinada, por abranger somente uma coisa.
c) Quanto ao limite: O direito obrigacional é ilimitado, eis que permite a criação de novas figuras contratuais que não têm correspondentes na legislação. O direito real, por sua vez, não pode ser livremente convencionado por estar limitado e regulamentado, expressamente, na norma jurídica, configurando-se como numerus clausus.
d) Quanto aos efeitos: O efeito erga omnes dos direitos reais faz como estes sejam absolutos, impondo a todos da coletividade o respeito ao poder do titular sobre a coisa. O registro da hipoteca, junto ao Registro de Imóveis, é um exemplo do efeito erga omnes dos direitos reais. Nos direitos obrigacionais, o efeito se opera somente entre o credor e o devedor.
e) Quanto à eficácia: Os direitos reais têm eficácia absoluta e os direitos obrigacionais têm eficácia relativa.


1.2 EVOLUÇÃO DA TEORIA DAS OBRIGAÇÕES

Podemos resumir a evolução da Teoria das Obrigações no seguinte quadro esquemático:

PERÍODO ACONTECIMENTO HISTÓRICO (Leia mais detalhes adiante, no texto de Bruna Lyra Duque)
1) ANTIGUIDADE
1.1. Nexum
1.2. Contractus
1.3. Pactum
1.4. Constituições Imperiais
1.4.1. devedor virava escravo ou respondia com o próprio corpo
1.4.2. ACTIO ROMANA –
1.4.3. não responsabilização do devedor
1..4.4. formalismo atenuado
2) IDADE MÉDIA –Séc. V a XV A Teoria das Obrigações deriva de costumes germânicos:
- vingança privada
– responsabilidade penal
3) RENASCIMENTO - valores morais
- palavras escritas nos contratos
4) SÉCULO XIX Força obrigatória dos contratos: PACTA SUNT SERVANDA
5) CC 1916 Individualidade
6) CC 2002 Função Social do Contrato

DISTINÇÃO ENTRE DIREITOS OBRIGACIONAIS E REAIS

Diferenças:

Quanto ao objeto
Para o direito das coisas o objeto é o bem corpóreo, a coisa, enquanto para o direito obrigacional, o objeto é determinada prestação.

Quanto aos sujeitos
Para o direito obrigacional o sujeito passivo é determinado ou determinável. Para o direito real, o sujeito passivo é indeterminável (são todas as pessoas do universo).

Quanto à duração:
O direito patrimonial (pessoal) é transitório, porque extingue-se com o cumprimento da obrigação enquanto o direitos real é perpétuo extinguindo-se apenas por causas expressas em lei.

Quanto à formação:
O direito patrimonial pode ser criado pela vontade das partes, enquanto que o direitos real só pode ser criado pela lei.

Quanto ao exercício
O direito patrimonial (pessoal) confere ao credor o direito de exigir do devedor determinada prestação, exigindo-se, portanto a figura de um sujeito passivo. O direito real é exercido diretamente sobre a coisa, sem necessidade da existência de um sujeito passivo.

Quanto à ação
O direito patrimonial requer ação pessoal, dirigida somente cotra quem figure na relação jurídica como sujeito passivo.
O direito real requer ação contra quem detenha a coisa.

OBRIGAÇÕES NATURAIS
A obrigação natural é um dever Moral, porém incompleto juridicamente. É Inspirada na moral, na consciência, no dever de consciência da população. Não é juridicamente exigível, não possui previsão na lei.

Os efeitos da obrigação natural.
O devedor não pode ser compelido a realizar a obrigação. O pagamento é verdadeiro e legítimo, não é uma doação ou por mera liberalidade.O sujeito que cumpriu a obrigação não pode requerer a restituição da prestação, pois, uma vez paga a prestação vale como cumprimento legítimo.

Características das Obrigações Naturais:

Inexistência do dever de prestar:
A obrigação de prestar depende única e exclusivamente na vontade do credor que, se assim entender, pode proceder ao pagamento da prestação. Todavia assim o fará de forma voluntária, dada a inexistência de obrigatoriedade de prestação da obrigação natural.

Inexigibilidade do cumprimento
Essa consiste na ausência do direito do credor de exigir que o devedor proceda ao cumprimento de obrigação natural.

Inadmissibilidade de repetição em caso de pagamento voluntário
Uma vez procedida à prestação do débito, levada a efeito de forma espontânea e por pessoa capaz, não poderá repetir o que se pagou.

PRINCÍPIOS DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
1 - Princípio da Autonomia da Vontade Contratual
A autonomia da vontade, ou autonomia privada, diz respeito que ninguém estará sujeito a obrigações que não tenha querido. A partir do momento em que se contrata o cidadão está obrigado unicamente porque ele assim o quis e na exata medida de seu querer, respeita-se, antes de tudo, a sua liberdade.
2. Força Obrigatória dos Contratos:
Os indivíduos devem respeitar todas as obrigações em relação às quais tenham dado seu consentimento. É regido pelo princípio do Pacta sunt servanda.
3. Efeito Relativo do Contrato (eficácia inter partes).
O efeito relativo do contrato diz respeito ao vinculo exclusivo dos contratantes ao que tenha sido objeto do pacto. Cada indivíduo não pode obrigar-se senão a si próprio. Todavia, pessoas estranhas ao contrato podem ser atingidas por seus efeitos em alguns casos, como se dá, por exemplo, com os sucessores.
4. O Princípio da Função Social do Contrato:
Previsto no artigo 421 do Código Civil: "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato".
5. O Princípio da Boa-Fé Objetiva:
Previsto no artigo 422 e 187, na medida em que as regras de conduta dos contratantes devem buscar o alcance da finalidade contratual, a sua finalidade última, conforme as legítimas expectativas das partes.
6- Princípio do Equilíbrio Econômico Contratual:
A República Federativa do Brasil possui como objetivo fundamental "construir uma sociedade livre, justa e solidária", reza o inciso I, do art. 3.º da Constituição Federal de 1988.

COAÇÃO:
Violência física ou psíquica que pode ser adotada contra uma pessoa ou um grupo de pessoas. Ocorre quando o agente atua sob uma determinada pressão e age em conformidade com o pensamento e a vontade que o pressiona. Todo ato praticado sob coação é anulável.
SANÇÃO:
É a penalidade aplicada quando determinada regra é transgredida.

Mariângela Guerreiro Milhoranza – Doutoranda em Direito pela PUC/RS, Mestre em Direito pela PUC/RS; Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/RS; Advogada e Professora da UCS
www.tex.pro.br/.../Aula_1_-_Direito_das_Obrigacoes....‎


Análise histórica do direito das obrigações
Bruna Lyra Duque

Sabemos que é por meio das relações obrigacionais que se estrutura o regime econômico, assim, através do direito das obrigações se estabelece também a autonomia da vontade entre os particulares na esfera patrimonial.
Podemos afirmar que o direito das obrigações exerce grande influência na vida econômica, em razão da inegável constância das relações jurídicas obrigacionais no mundo contemporâneo. Intervém este direito na vida econômica, nas relações de consumo sob diversas modalidades e, também, na distribuição dos bens.
O Direito das Obrigações é, pois, um ramo do direito civil que tem por fim contrapesar as relações entre credores e devedores. Consiste num complexo de normas que regem relações jurídicas de ordem patrimonial que têm por objeto prestações (dar, restituir, fazer e não fazer) cumpridas por um sujeito em proveito de outro.
Por sua vez, podemos conceituar o contrato como uma espécie do gênero negócio jurídico que possui natureza bilateral e pelo qual as partes se obrigam a dar, restituir, fazer ou não fazer alguma coisa.
O contrato é, portanto, o acordo de vontades entre pessoas do direito privado, amparado pelo ordenamento legal e realizado em função de necessidades que gera, resguarda, transfere, conserva, modifica ou extingue direitos e deveres, visualizados no dinamismo de uma relação jurídica obrigacional.
A análise de alguns marcos históricos das relações obrigacionais é de extrema importância para o estudo deste campo do Direito Civil, principalmente se for levado em conta que o direito é uma estrutura "social mutável, imposta à sociedade; é afetado por mudanças fundamentais dentro da sociedade e é, em ampla escala, um instrumento assim como um produto dos que detêm o poder" (CAENEGEM, 2000, p.277).
Delineamos a historicidade do contrato a partir do legado advindo do Direito Romano, passando pela Antigüidade, Idade Média, Renascimento até chegar ao Iluminismo, época que muito influenciou o direito privado do ponto de vista da autonomia da vontade.

Importa ressaltar que as demonstrações de épocas históricas não esgotam as contribuições para o direito privado. Outros momentos, ainda que não destacados, contribuíram também para o avanço das obrigações. Entendemos que os períodos abaixo apresentados são aqueles que melhor exemplificam as fases de evolução das relações obrigacionais.
Na fase da Antigüidade, o direito romano não conheceu o termo obrigação. Esse período pode ser dividido em quatro momentos: nexum, contractus, pactum e as Constituições Imperiais.

O Nexum foi a primeira idéia de vínculo entre dois sujeitos. Por esta ligação contratual, caso o devedor não cumprisse o convencionado, ele era convertido em escravo ou respondia pela dívida com o seu próprio corpo.
Já os contractus surgiram com o jus civiles e refletiam um teor de rigidez na sua estrutura. Tal acordo preocupava-se apenas com os contratos reais ou formais, nos quais, em caso de inadimplemento, o credor poderia se utilizar da actio (forma de preservação do direito utilizada pelos credores).

O pactum era o acordo em que as partes não poderiam responsabilizar o devedor em caso de descumprimento do acordado. Tinham mero valor moral e não possuíam caráter obrigatório. O pacto era desprovido da actio. Por fim, com as constituições imperiais, o formalismo dos contractus foi atenuado, criando-se, assim, uma teoria sobre contratos inominados e para os pactos mais simples.
Quanto a isso, ensina José Roberto dos Santos Bedaque (2001, p.80) que a actio romana identificava-se mais ou menos com a noção atual de direito subjetivo. Actio seria a atuação de alguém "perante o pretor, recitando fórmulas legais solenes e sacramentais, para obtenção de um jurado particular, incumbido de dirimir a controvérsia".

Na Idade Média, entre os Séculos V e XV, a teoria das obrigações, originária da Europa, derivava dos costumes germânicos. A responsabilidade pelo descumprimento confundia-se com a vingança privada e com a responsabilidade penal. No Renascimento, a relação obrigacional passava a ser caracterizada por dar maior valor às palavras previstas nos contratos. Houve forte influência da Igreja nos valores morais.

Por sua vez, no Século XIX, surgiu a regra da força obrigatória dos contratos, através do Código Napoleônico, em que se procurou dar mais valor à autonomia da vontade.

Neste contexto, ensina Caenegem (2000, p.178) que a filosofia do iluminismo rejeitou os velhos dogmas e as tradições (especialmente religiosas) e colocou o homem e seu bem-estar no centro de suas preocupações. Enfim, o centro de tudo passou a ser o indivíduo, a propriedade e a aquisição de bens.

Consideramos que o Código Civil brasileiro de 1916 recebeu forte influência da legislação francesa, inspirado no liberalismo, valorizando o indivíduo, a liberdade e a propriedade.

A base contratual que se pautou o diploma civil de 1916 observou características individualistas, observando apenas uma igualdade formal, fazendo lei entre as partes (pacta sunt servanda). Segundo tal diploma, ficava assegurada a imutabilidade contratual e os contraentes celebravam livremente um acordo que deveria ser absolutamente respeitado.

Todavia a aplicabilidade do pacta sunt servanda começou a ser relativizada e a observar a cláusula rebus sic stantibus, como uma própria cobrança das necessidades sociais que não suportaram mais a predominância de relações contratuais com desequilíbrios, cláusulas abusivas e má-fé.

Assim, com o advento do Código de 2002, houve um rompimento do aspecto individualista. Os novos dispositivos legais deste código passam a disciplinar um conjunto de interesses estruturados no princípio da socialidade, em que, por exemplo, a força obrigatória dos contratos é mitigada para proteger o bem comum e a função social do contrato.
Entendemos, portanto, ser incompatível o Código de 2002 com o reconhecimento da natureza existencialista do contrato, que não mais pode ser visto como mero símbolo das codificações do séc. XVIII, menosprezando o ser enquanto ser humano, apenas valorizando-o como titular de um crédito.

REFERÊNCIAS
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo. São Paulo: Malheiros, 2001.
CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. Tradução Carlos Eduardo Lima Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
DUQUE, Bruna Lyra. A intervenção estatal e a liberdade contratual: uma investigação acerca da ponderação de princípios na ordem econômica constitucional. 2004. Dissertação (Mestrado em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais). FDV, 2004.
GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2003.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro: teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2004.
GOYARD FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
PINTO, Carlos Alberto de Motta. Teoria Geral do Direito Civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.

Disponível em: http://jus.com.br/artigos/10030/analise-historica-do-direito-das-obrigacoes#ixzz2cKaORRMT

GONÇALVES, Carlos Roberto Gonçalves. Direito das Obrigações: parte geral. 9. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2008. (Coleção sinopses jurídicas : v. 5)

Conceito e elementos constitutivos das obrigações

“É um vínculo de direito pelo qual alguém (sujeito passivo) se propõe a dar, fazer ou não fazer qualquer coisa (objeto), em favor de outrem (sujeito ativo)” (Silvio Rodrigues, 2002, 4).

Trata-se, na verdade, de uma relação jurídica de caráter transitório, de natureza marcada pela economicidade pela qual o devedor se vincula ao credor devendo cumprir determinada prestação pessoal, positiva ou negativa, cujo inadimplemento enseja a este executar o patrimônio daquele para satisfação de seu interesse.

Os elementos constitutivos da obrigação são:
a) Sujeitos – são as partes na relação obrigacional, que necessariamente se compõem de um credor (parte ativa) e um devedor (parte passiva).

O credor espera o fornecimento da obrigação pelo devedor, que deverá fazê-lo. Esta limitação na liberdade do devedor (de dar, fazer ou não fazer algo em favor de outrem), pode ter advindo: de sua vontade, de ato ilícito ou de imposição legal.
Ocorrendo a inadimplência, surgirá para o credor a possibilidade de colher, judicialmente no patrimônio do devedor, recursos para a satisfação de seu direito.

O elemento subjetivo reúne as pessoas que intervém na relação jurídica obrigacional: o sujeito ativo (credor), que pode exigir do sujeito passivo (devedor), o objeto da prestação jurídica. É possível que o sujeito da obrigação seja pessoa física ou jurídica, devendo ser determinado ou determinável (mas no momento do cumprimento da obrigação necessariamente se tornará determinado). Ex. de indeterminação do sujeito ativo: Devedor assina um cheque ao portador, não sabe quem ira recebê-lo no banco, pois o mesmo cheque pode circular na praça sendo neste momento indeterminado, mas no momento em que o portador dirigir-se ao banco para recebê-lo, determina-se aí o credor.

b) Vínculo jurídico – é jurídico porque, sendo disciplinado pela lei, vem acompanhado de sanção (permitir ao credor, através da execução patrimonial do inadimplente, obter a satisfação de seu crédito).

O devedor que descumpre a obrigação se sujeita a ressarcir o prejuízo causado (art. 389 do CC); e, se espontaneamente se recusa a colaborar, vê o credor recorrer ao Judiciário, que ordenará a penhora de seus bens para, com o produto por eles alcançado em praça, satisfazer o seu débito.

Dívida Responsabilidade
Dever que incumbe ao devedor de prestar aquilo que comprometeu. Prerrogativa conferida ao credor, ocorrendo a inadimplência, de proceder à execução do patrimônio do devedor.

A relação jurídica obrigacional nasce da vontade dos indivíduos ou da lei e deve ser cumprida no meio social espontaneamente. A responsabilidade só surge no momento em que a obrigação não é cumprida. Existe tanto obrigação sem responsabilidade (Ex: dívida de jogo e dívida prescrita) quanto responsabilidade sem obrigação (Ex: fiador, avalista).

c) Objeto e causa – a prestação, que consiste em dar, fazer ou não fazer alguma coisa.

A corrente majoritária dos juristas entende que a prestação tem sempre um conteúdo patrimonial, porque, caso contrário, seria impossível reparar perdas e danos no caso de descumprimento. Entretanto, não poderíamos deixar de citar a sábia observação de Gagliano e Pamplona Filho (2003, 33) de que “... prestações há, entretanto, que não são economicamente mensuráveis, embora constituam, inequivocamente, objeto de uma obrigação. É o caso, por exemplo, de alguém se obrigar, por meio de um contrato, a não ligar o seu aparelho de som, para não prejudicar o seu vizinho. A prestação, no caso, não é marcada pela economicidade, e, nem por isso, se nega a existência de uma relação obrigacional”.
Postado há 9th October 2011 por Prof.ª Patrícia Donzele Cielo
Marcadores: Obrigações
http://profpatriciadonzele.blogspot.com.br/2011/10/conceito-e-elementos-constitutivos-das.html

INTRODUÇÃO


As fontes do direito são os meios pelos quais se formam ou se estabelecem as normas jurídicas. Trata-se, em outras palavras, de instância de manifestação normativa: a lei, o costume (fontes diretas), a analogia, a jurisprudência, os princípios gerais do direito, a doutrina e a equidade (fontes indiretas).
Precisamente, o estudo dos fatos jurídicos que dão origem, não às normas jurídicas, mas sim às relações obrigacionais.
Sempre entre a lei e os seus efeitos obrigacionais (os direitos e obrigações e decorrentes) existirá um fato jurídico (o contrato, o ato ilícito etc.), que concretize o suposto normativo. Vale dizer, entre a norma e o vínculo obrigacional instaurado entre credor e devedor, concorrerá um acontecimento – natural ou humano – que se consubstancia como condição determinante da obrigação.


2. AS FONTES DAS OBRIGAÇÕES NO DIREITO ROMANO


Deve-se ao jurisconsulto GAIO o trabalho de sistematização das fontes das obrigações, desenvolvidas posteriormente nas Institutas de Justiniano, que seriam distribuídas em quatro categorias eficientes.
a) O contrato – compreendendo as convenções, as avenças firmadas entre duas partes;
b)O quase – contrato – tratava-se de situações jurídicas assemelhadas aos contratos, atos humanos lícitos equiparáveis aos contratos, como a gestão de negócios;
c) O delito – consistente no ilícito dolosamente cometido, causador de prejuízo para outrem;
d)O quase delito – consiste nos ilícitos em que o agente atuou culposamente, por meio de comportamento carregado de negligência, imprudência ou imperícia.
Segundo SILVIO VENOSA “os critérios de distinção resumem-se na existência ou não da vontade. A vontade caracteriza o contrato, enquanto toda a atividade lícita, sem consenso prévio, implica o surgimento de um quase-contrato. Já o dano intencionalmente causado é um delito, enquanto o dano involuntariamente causado é um quase-delito”.


3. CLASSIFICAÇÃO MODERNA DAS FONTES DAS OBRIGAÇÕES


SILVIO RODRIGUES, para quem a lei constitui fonte primordial das obrigações, ao lado da vontade humana e do ato ilícito.
Em prol da inserção da lei na categoria de fonte das obrigações argumenta-se que há obrigações nascidas diretamente da lei (ex lege), a exemplo da prestação alimentar devida pelo pai ao filho, por força da norma prevista no art. 1.696 do CC-02).
Todavia, a despeito de não desconhecermos que a lei é a causa primeira de toda e qualquer obrigação (fonte imediata), sustentamos que haverá sempre entre o comando legal e os efeitos obrigacionais deflagrados in concreto obrigação. No caso da prestação alimentar, por exemplo, esta causa é o próprio vinculo de parentesco existente entre pai e filho.
Este é o pensamento de SÍLVIO DE SALVO VENOSA, com quem concordamos inteiramente:
“Quer-nos parecer, contudo, sem que haja total discrepância com o que já foi dito, que a lei é sempre fonte imediata das obrigações. Não pode existir obrigação sem que a lei, ou, em síntese, o ordenamento jurídico, a ampare. Todas as demais ‘várias figuras’ que podem dar nascimento a uma obrigação são fontes mediatas. São, na realidade, fatos, atos e negócios jurídicos que dão margem ao surgimento de obrigações. É, assim, em linhas gerais, que se posiciona Orlando Gomes”.
Por isso, classificamos as fontes mediatas das obrigações da seguinte forma:
a) Os atos jurídicos negociais (o contrato, o testamento, as declarações unilaterais de vontade);
b) Os atos jurídicos não negociais (o ato jurídico strictu sensu, os fatos materiais – como a situação fática de vizinhança etc.);
c) Os atos ilícitos (no que se incluem o abuso de direito e o enriquecimento ilícito).
Dentre as fontes mediatas, merece especial referência, pela considerável importância e larga aplicação prática, o contrato – fonte negocial mais relevante para o Direito das Obrigações.
De fato, desde quando o homem abandonou o seu estado mais primitivo, o contrato, filho dileto da autonomia privada, passou a ser o mais relevante instrumento jurídico de circulação de riquezas econômicas.
Manifestação primordial da propriedade, marcou o desenvolvimento político dos povos.
Por meio dele, substitui-se a força bruta pelo consenso, de modo a permitir que um grupo pudesse adquirir – inicialmente pela simples troca, mais tarde pelo dinheiro – bens de outro.
Claro está que esta manifestação primitiva de fenômeno contratual, a despeito de carecer de sistematização dogmática – ulteriormente desenvolvida pelo Direito Romano – já se transformava em importante fonte de obrigações.
Mas note-se que o contrato é apenas uma espécie de negócio jurídico, não exaurindo esta categoria.
Há também os negócios de natureza unilateral (formados por manifestação de uma só vontade), como o testamento e a promessa de recompensa (declaração unilateral de vontade), que também são fontes de obrigações.
No que diz respeito aos atos jurídicos não negociais, sejam, atos materiais ou participações, o simples comportamento humano produz efeito na órbita do direito, sendo capaz de gerar obrigações perante terceiros, com características singulares.
Finalmente, temos o ato ilícito, cujo conceito já tivemos oportunidade de desenvolver; “neste último caso, estaremos diante de uma categoria própria, denominada ato ilícito, conceito difundido pelo Código Civil Alemão, consistente no comportamento humano voluntário, contrário ao direito, e causador de prejuízo de ordem material ou moral”.
Assim, quando o sujeito, guiando o seu veículo, excede o limite de velocidade e atropela alguém, concretiza o comando normativo previsto no art. 186 do CC-02 – “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” – de forma que o agente (devedor) ficará pessoalmente vinculado à vitima (credor), até que cumpra a sua obrigação de indenizar.
No estudo do ato ilícito, destaca-se o abuso de direito, considerado também fonte de obrigações, e que mereceu especial referência no Código Civil de 2002, consoante se depreende da leitura de seu art. 187: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Muitos exemplos poderiam ser apontados, a exemplo da negativa injustificada de contratar, após o aceitante efetuar gastos nesse sentido; no Direito das Coisas, o abuso do direito de propriedade causando danos a vizinhos etc. Todos esses fatos traduzem abuso de direito e determinarão a obrigação de o causador do dano (devedor) indenizar o prejudicado (credor). Por isso, é fonte de o causador do dano (devedor) indenizar o prejudicado (credor). Por isso, é fonte de obrigação.


4. AS FONTES DAS OBRIGAÇÕES NO CÓDIGO CIVIL DE 1916 E NO NOVO CÓDIGO CIVIL


O Código de 1916 reconhecia expressamente, três fontes de obrigações:
a) O Contrato;
b) A declaração unilateral de vontade;
c) O ato ilícito.
O novo Código Civil mantém a mesma orientação do código antigo, reconhecendo estas causas sem dispensar-lhes capítulo próprio.


Bibliografia
GANGLIANO, Pablo Stolze; NOVO CURSO DE DIREITO CIVIL, VOL. II: Obrigações, 9. Ed. Ver. e atual.- São Paulo: Saraiva. 2008.
http://durasedlex.blogspot.com.br/2012/03/fontes-das-obrigacoes-iii.html


1. Formas híbridas das obrigações

Figuras híbridas (cruzamento ou mistura de espécies diferentes) ou intermediárias são as que se situam entre o direito pessoal e o direito real. Alguns juristas preferem a expressão obrigação mista. São elas: obrigações propter rem, os ônus reais e as obrigações com eficácia real.
1.1. Obrigações “propter rem”:
Conceito: é a que recai sobre uma pessoa, por força de um direito real. Só existe em razão da situação jurídica do obrigado, de titular do domínio ou de detentor de determinada coisa. (Ex.: obrigação imposta aos proprietários e inquilinos de um prédio de não prejudicarem a segurança, o sossego e a saúde dos vizinhos – art. 1277 do CC; obrigação de indenizar benfeitorias – art. 1.219 do CC; obrigação imposta ao condômino de concorrer para as despesas de conservação da coisa comum – art.1315, etc.).
LEMBRE-SE: a prestação é imposta em função da titularidade da coisa. Portanto, uma vez substituído o titular passivo, ao adquirente recai o dever de prestar o que se encontra ligado à coisa.
Essa substituição só vigora enquanto a obrigação real, continuando ligada a determinada coisa, não ganhar autonomia. Ex.: terceiro que recebe imóvel do proprietário anterior com obra em contravenção do direito da vizinhança, não irá reparar os danos causados, mas estará impedido de fazer obra dessa espécie.

Caracteriza-se pela origem e transmissibilidade automática. O adquirente do direito real não pode recusar-se em assumi-la.
É importante ressaltar, também, que o caráter de tipicidade da obrigação propter rem decorrente da sua acessoriedade como direito real. Diferente das servidões em que a lei permite a sua criação pela convenção dos respectivos titulares do domínio.
Natureza jurídica: a doutrina moderna entende que a obrigação propter rem situa-se no terreno fronteiriço entre os direitos reais e os pessoais (obrigacionais). Direito misto – tem características de direito real por recair sobre uma pessoa que fica adstrita a satisfazer uma prestação, e de direito real, pois vincula sempre o titular da coisa.
1.2. Ônus reais
Conceito: são obrigações que limitam o uso e gozo da propriedade, constituindo gravames ou direitos oponíveis erga omines. O titular só poderá exercer o direito se suportar o ônus (Ex.: servidão – art.1382; renda constituída sobre os imóveis – art. 803 e 813. Este instituto está em desuso – o proprietário do imóvel obrigava-se a pagar prestações periódicas de sua soma determinada. Art. 754 do CC de 1916)
Aderem e acompanham a coisa. Quem deve é esta e não a pessoa.
O titular da coisa deve ser devedor, sujeito passivo de uma obrigação.
1.3. Obrigações com eficácia real
Conceito: são as que, sem perder seu caráter de direito a uma prestação, transmitem-se e são oponíveis a terceiro que adquira direito sobre determinado bem.
Certas obrigações resultantes de contratos alcançam, por força de lei, a dimensão de direito real.
Ex.: art. 27 da Lei Inquilinária (Lei 8.245/91):
“Art. 27. No caso de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de direitos ou dação em pagamento, o locatário tem preferência para adquirir o imóvel locado, em igualdade de condições com terceiros, devendo o locador dar-lhe conhecimento do negócio mediante notificação judicial, extrajudicial ou outro meio de ciência inequívoca.
Parágrafo único. A comunicação deverá conter todas as condições do negócio e, em especial, o preço, a forma de pagamento, a existência de ônus reais, bem como o local e horário em que pode ser examinada a documentação pertinente.”
Existirá um direito real para o inquilino se tiver registrado devidamente o contrato, o qual lhe permitirá haver o imóvel, ou então, exclusivamente, um direito pessoal estampado em um pedido de perdas e danos. O contrato de locação, com registro imobiliário, permite que o locatário oponha seu direito de preferência erga omnes (contra todos).
Situação semelhante é a do compromisso de compra e venda, em que, uma vez inscrito no Registro Imobiliário, o compromissário passará a gozar de direito real, oponível a terceiros.

2. Modalidades das obrigações
Modalidade é o mesmo que espécies. Não há uniformidade de critério entre os autores, variando a classificação conforme o enfoque e a metodologia adotada.
Quanto ao objeto: dar, fazer (obrigações positivas) e não fazer (obrigação negativa). Há casos em que a obrigação de fazer pode abranger a obrigação de dar. Ex.: contrato de empreitada com fornecimento de material.
Quanto aos seus elementos: dividem-se as obrigações em:
*Simples: 1 sujeito ativo 1 sujeito passivo 1 objeto todos os elementos no singular. Ex.: João obrigou-se a entregar a José um veículo.
*Composta ou complexa: quando um dos elementos acima estiver no plural, a obrigação será composta. Ex.: João obrigou-se a entregar a José um veículo e um animal (dois objetos).
A) No exemplo acima será obrigação composta por multiplicidade de objetos. Esta, por sua vez, pode ser dividida em:
A.1) cumulativas ou conjuntivas: os objetos encontram-se ligados pela conjunção “e”, ex.: obrigação de entregar um veículo “e” um animal;
A.2) alternativas ou disjuntivas: estão ligados pela disjuntiva “ou”, ex.: entregar um veículo “ou” um animal. Nesse caso o devedor libera-se da obrigação entregando o veículo ou o animal.
Alguns doutrinadores mencionam uma espécie “sui generis” da modalidade alternativa, a facultativa: trata de obrigação simples ficando porém ao devedor, e só a ele, exonerar-se mediante o cumprimento de prestação diversa da pretendida – obrigação com faculdade de substituição. Neste caso ela é vista só sob a ótica do devedor, pois se observarmos sob o prisma do credor ela será simples.

B) Por outro lado, caso haja mais de um sujeito seja ele ativo ou passivo, será obrigação composta por multiplicidade de sujeitos. Estas, por sua vez, podem ser:
B.1) divisíveis: o objeto da prestação pode ser dividido entre os sujeitos – cada credor só tem o direito à sua parte, podendo reclamá-la independentemente do outro. E cada devedor responde exclusivamente pela sua quota. Se houver duas prestações o credor pode exigi-la dos dois devedores (CC art. 257);
B.2) indivisíveis: o objeto da prestação não pode ser dividido entre os sujeitos (CC, art. 258). Lembrando que neste caso, cada devedor é responsável por sua quota parte, todavia, em função da indivisibilidade física do objeto (ex.: cavalo) a prestação deve ser cumprida por inteiro (art. 259 e 261);
B.3) solidárias: independe da divisibilidade ou da indivisibilidade, pois resulta da lei ou da vontade das partes (CC art. 265). Pode ser ativa ou passiva. Se existirem vários devedores solidários passivos, cada um deles responde pela dívida inteira. O devedor que cumprir sozinho a prestação pode cobrar, regressivamente, a quota-parte de cada um dos co-devedores (CC, art. 283).
LEMBRE-SE: Nos três casos só há necessidade de saber se uma obrigação é divisível, indivisível ou solidária quando há multiplicidade de devedores ou de credores.
Obrigações de meio e de resultado: na primeira o devedor promete empregar seus conhecimentos, meios e técnicas para a obtenção de determinado resultado, sem no entanto responsabilizar-se por ele. Ex.: advogados, médicos, etc.; na segunda o devedor dela se exonera somente quando o fim prometido é alcançado. Se não for alcançado responderá pelos prejuízos do insucesso. Ex.: transportador – levar o passageiro são e salvo a seu destino, cirurgião plástico no caso de trabalho de natureza estética.

Obrigações civis e naturais: a primeira encontra respaldo no direito positivo, podendo seu cumprimento ser exigido pelo credor, por meio de ação; na segunda o credor não tem o direito de exigir a prestação, e o devedor não está obrigado a pagar, todvia se este, voluntariamente, paga, não cabe o pedido de restituição da importância (retenção – único efeito que o direito positivo dá à obrigação natural) Ex.: dívida prescrita CC art. 882 e dívida de jogo CC art. 814.

Obrigações de execução instantânea, diferida e periódica: Quanto ao momento em que devem ser cumpridas, as obrigações classificam-se em: a) momentâneas ou de execução instantânea, que se consumam num só ato, sendo cumpridas imediatamente após sua constituição, ex.: como na compra e venda à vista; b) de execução diferida, cujo cumprimento deve ser realizado também em um só ato, mas em momento futuro, ex.: entrega, em determinada data, do objeto alienado; c) de execução continuada ou de trato sucessivo, que se cumpre por meio de atos reiterados, como ocorre na prestação de serviços, na compra e venda a prazo ou em prestações periódicas etc.

Obrigações líquidas e ilíquidas: líquida – certa quanto à sua existência, e determinada quanto ao seu objeto - expressa por uma cifra, por um algarismo; Ilíquida, ao contrário, é a que depende de prévia apuração, pois o seu valor, o montante da prestação, apresenta-se incerto.


Obrigações principais e acessórias: as primeiras subsistem por si, sem depender de qualquer outra, ex.: entregar a coisa, no contrato de compra e venda; as segundas têm sua existência subordinada a outra relação jurídica, ou seja, dependem da obrigação principal, ex.: fiança, juros, etc. Vale ressaltar que a nulidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a recíproca não é verdadeira, pois a destas não induz a da principal (CC art. 184, 2a parte).

BIBLIOGRAFIA

FIGUEIREDO, Fábio Vieira. Direito Civil: direito das obrigações. São Paulo: Rideel, 2007.
GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume II: obrigações / Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Panplona Filho. 9 .ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, volume 2: teoria geral das obrigações. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
MONTEIRO, Washington de Barros, Curso de Direito Civil, v.4: direito das obrigações, 1ª Parte: das modalidades, das obrigações, dos efeitos das obrigações, do inadimplemento das obrigações. 32.ed. atual. Por Carlos Alberto Dabus Maluf. São Paulo: Saraiva, 2003.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito civil: teoria geral das obrigações. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v.2.
VENOZA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008. (Coleção direito civil; v.2).
VIANA, Marco Aurélio Silva. Curso de direito das obrigações. 1.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. b.

www.professorflavio.com/Arquivos/Apostilas/Obrigacoes II.doc‎


Direito das Obrigações: Plano de Ensino

Estou construindo uma Plano de Ensino de Direito Civil - Direito das Obrigações. Aceito sugestões. Segue abaixo a proposta de Plano de Ensino


Direito Civil – Direito das Obrigações – 2º Semestre de 2013
Curso: Direito
Período: Noturno
Professor(es): José Benedito de Barros
Carga Horária: 72 h
Ano/Semestre: 2013/ 2º semestre

Objetivo Geral
Formar profissionais aptos a viver e defender os valores e princípios gerais do direito, objetivando a justiça, a ética, a moral, solidariedade, a equidade, a igualdade e a liberdade; assumir cargos técnicos jurídicos nas diversas carreiras públicas ou privadas, sensíveis necessidades sociais e à dinâmica do direito, com raciocínio jurídico e reflexão crítica; desenvolver a reflexão científica motivadora da produção de conhecimentos jurídicos ensejadores de novos processos de criação do direito; contribuir criativamente para o desenvolvimento da sociedade brasileira, procurando adaptar inovações jurídico-tecnológicas, às necessidades e exigências do seu desenvolvimento e expansão pessoal e comunitária.

Objetivos específicos:

Proporcionar conhecimentos e habilidades aos alunos sobre o tema obrigações, por meio da dogmática jurídica e da jurisprudência, com possibilidade de aplicação do seu conteúdo a casos práticos; proporcionar conhecimento interdisciplinar do Direito das Obrigações, permitindo sua identificação com seu contexto econômico e social.

Ementa
Introdução ao obrigações: importância filosófica, jurídica, política e social. Obrigação: conceito, elementos, fontes, modalidades, classificação e efeitos. Obrigações Públicas e Privadas. As obrigações decorrentes de novos direitos. Cláusula penal. Pagamento indevido. Imputação do pagamento. Extinção da obrigação: pagamento, pagamento com sub-rogação, pagamento por consignação, dação em pagamento, novação, compensação, confusão, remissão, transação e compromisso. Inadimplemento da obrigação; mora, perdas e juros. Transmissão da obrigação: cessão de crédito. Aspectos Gerais sobre as obrigações comerciais. As especificidades das relações comerciais. Aspectos gerais sobre responsabilidade civil.


Programa
1 Conceito e amplitude do Direito das Obrigações
1.1 Distinção entre direitos obrigacionais e direitos reais
1.2 Evolução da Teoria das Obrigações
1.3 O Direito das Obrigações no Código Civil
1.3.1 Conceito de Obrigação
1.3.2 Elementos constitutivos de Obrigação
1.3.3 Fontes das Obrigações
1.3.4 Obrigações Contratuais e Extracontratuais
2 Modalidades das Obrigações
2.1 Obrigações de dar
2.2 Obrigações de fazer
2.3 Obrigações de não fazer
2.4 Obrigações alternativas
2.5 Obrigações divisíveis e indivisíveis
2.6 Obrigações solidárias
3 Outras modalidades de Obrigações
3.1 Obrigações civis e naturais
3.2 Obrigações de resultado, de meio e de garantia
3.3 Obrigações de execução instantânea, diferida e continuada
3.4 Obrigações puras, condicionais e a termo
3.5 Obrigações líquidas e ilíquidas
3.6 Obrigações principais e acessórias
4 Transmissão das Obrigações
4.1 Cessão de crédito
4.2 Assunção de dívida
4.3 Cessão de contrato
5 Adimplemento e extinção das Obrigações
6 Do Pagamento
6.1 Pagamentos especiais
6.1.1 Em consignação
6.1.2 Com sub-rogação
6.1.3 Imputação do pagamento
6.1.4 Dação em pagamento
6.2 Extinção das Obrigações sem Pagamento
6.2.1 Novação
6.2.2 Compensação
6.2.3 Transação
6.2.4 Compromisso (Lei da Arbitragem - n° 9.307/96)
6.2.5 Confusão
6.2.6 Remissão de Dívidas
7 Conseqüências do Inadimplemento das Obrigações
7.1 Mora
7.2 Inadimplemento absoluto.
7.3 Inadimplemento ruim ou quebra positiva do contrato
7.3 Perdas e Danos
7.4 Juros Legais
7.5 Cláusula Penal
7.6 Arras ou sinal
8. Responsabilidade Civil
8.1.Introdução: Importância e atualidade da matéria; Noção e conteúdo; Dificuldade conceitual; História e evolução da Responsabilidade Civil.
8.2. Dano: Conceito. Elementos. A classificação dos danos.
8.3. Dano Material e Moral: Distinção. Apuração do dano emergente e do lucro cessante. Reparação do dano moral. Feição constitucional do dano moral.
8.4. O dolo e a culpa: Distinção entre dolo e culpa. Do ato ilícito. Elementos.
8.5. Responsabilidade objetiva: Evolução doutrinária. Objeções e críticas. Socialização dos riscos. O Direito Brasileiro. Responsabilidade por danos ambientais.
8.6. Responsabilidade contratual: Alcance e limites da responsabilidade contratual. Responsabilidade em matéria de transporte. Responsabilidade dos profissionais liberais. A internet e outras questões controvertidas em diversas modalidades contratuais.
8.7. Responsabilidade Aquilina: Sujeitos ativo e passivo. Responsabilidade por fato próprio e de outrem. Responsabilidade pelo fato da coisa e animais. Os atos abusivos.
8.8. Responsabilidade dos médicos e dos demais profissionais de saúde; Considerações preliminares. Dano e culpa médica. Relação de causalidade. Responsabilidade civil na internação hospitalar e nos procedimentos médicos e de outros profissionais de saúde.
8.9. Responsabilidade patrimonial do Estado: Teorias. Crítica. Doutrina do risco administrativo. Pressupostos da pretensão ressarcitória.

Metodologia
O conhecimento transmitido em sala de aula deve ter uma conexão quase que imediata com a sua utilização prática. O conhecimento teórico-doutrinário estará ligado à amostragem dos fatos reais e a utilização dos conhecimentos jurídicos para compreendê-los. Desta forma, estimulando-se continuamente debates sobre os aspectos práticos da disciplina, procurar-se-á despertar no acadêmico o senso crítico tanto quanto à ordem política que prioriza a abordagem puramente tecnocrata quanto aos elementos teóricos do discurso do corpo doutrinário.

Aulas Teóricas: aulas dialogadas e dialetizadas. Utilização do método expositivo, no qual o assunto é apresentado ao acadêmico de forma lógica e estruturada através de exemplos práticos e atuais, podendo haver contestação, discussão e apresentação de novos exemplos bem como questionamentos pertinentes ao tema desenvolvido. Apresentação de trabalhos escritos e em grupo em forma de seminário, com exposição de temas a fim de que os alunos pesquisem e formem sua concepção junto ao assunto apresentado.

Avaliação

1) Avaliação teórica – Prova objetiva sem consulta, abrangendo os assuntos abordados durante este semestre, com peso correspondendo a 10,0 pontos.

2) Avaliação teórica - Prova discursiva com consulta à legislação, abrangendo os assuntos abordados durante este semestre, com peso correspondendo a 7.0 pontos.

3) Trabalhos avaliativos: 3.0 pontos
3.1. Trabalhos: duas dissertações sobre tema de direito obrigacional.
3.2. Utilização das normas científicas da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT.
3.3. Extensão dos trabalhos: 6 a 10 páginas.
3.4. Os cinco melhores trabalhos, após revisão, serão publicados no blog www.profjosebenedito.blogspot.com em co-autoria com o professor, com direito a um bônus de 1,0 (um) ponto na média final.

Cálculo da média Semestral das avaliações 1+ (2+3)/2.

4) Avaliação final para quem não atingir a média (consoante normas da instituição)
Bibliografia
Básica

BRASIL. CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO, 2002.
DINIZ, Maria Helena. Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral das Obrigações. v.2. São Paulo: Saraiva, 2010.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil –Obrigações (I e II). São Paulo:Saraiva, 2008.
Complementar
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. V.2.Direito das Obrigações. São Paulo:Saraiva, 2010.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2003.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Parte Geral das Obrigações. v.2. São Paulo: Saraiva, 2010.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. V.2.São Paulo:Atlas,2010.

Sites:
http://www.stf.jus.br
http://www.stj.jus.br
www.tjsp.jus.br
http://www.tjrs.jus.br
www.trf3.jus.br
http://www.conjur.com.br/
http://www.jurisway.org.br/
http://ulbra-to.br/cursos/Direito/2011/2/turmas/3108/impressao-plano

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Diálogo e dialética: semelhanças e diferenças

José Benedito de Barros*

As palavras são semelhantes. Mas será que são sinônimas?

Este texto pretende elucidar a questão, fundamentando-se no dicionário filosófico de Nicola Abbagnano.

A palavra diálogo é de origem grega. Sua escrita em latim é “dialogus”. Trata-se de uma conversa, uma discussão, uma investigação conjunta.

Platão utilizava a forma dialógica para exprimir suas ideias. Basta ler um de seus livros para entender isso. Livros como Fédon, A República e Leis podem ser citados como exemplos.

A palavra dialética também é de origem grega e é derivada de diálogo. Por isso muitas vezes há certa confusão, a ponto de muitos falarem da dialética platônica, citando como exemplo disso os diálogos presentes em suas obras. Mas a dialética vai muito além do diálogo, embora seja derivado dele. Além disso, a palavra “dialética” tem vários sentidos, ora mais próximo da palavra diálogo, ora se distanciando. Temos a dialética como método de divisão; a dialética como lógica do provável; a dialética como lógica; e a dialética como síntese dos opostos.

A dialética como método de divisão é conceito platônico. Platão entende a dialética como “técnica da investigação conjunta, feita através da colaboração de duas ou mais pessoas, segundo o procedimento socrático de perguntar e responder” (Abbagnano, 2000, p. 269). Essa investigação tem como propósito possibilitar uma progressão que parte do senso comum ou opinião (doxa) até se chegar ao entendimento elevado, a ciência (episteme). A dialética, neste sentido é entendida como método de investigação, partindo-se sempre da de uma hipotética dualidade da realidade (luz x sombra; opinião x ciência; dia x noite).

A dialética como lógica do provável foi mencionada por Aristóteles. A palavra provável significa que a existência de algo é aceita como possível, mesmo que ninguém ainda tenha demonstrado sua existência. Ele chama de dialético o raciocínio que tem como ponto de partida uma premissa provável e não demonstrada.

Vamos tentar criar um exemplo: é provável que haja planetas habitáveis em outros sistemas solares; assim, caso a habitação no planeta terra se torne inviável, pode-se promover uma envio de pessoas para aqueles planetas. A premissa provável aqui é: planetas habitáveis em outros sistemas solares”.

A dialética como lógica é tratada pelos estoicos. A lógica, aqui, é entendida como “a ciência do discutir corretamente nos discursos que consistem em perguntas e respostas”. É uma retomada dos diálogos platônicos. Para os estoicos existem, então duas maneiras de discutir, de dialogar: uma, espontaneista, sem atenção às regras do raciocínio correto; e outra que segue as regras do raciocínio correto. Então, para os estoicos, dialética é lógica.

Finalmente, temos a dialética como união dos opostos. O grande sistematizador desse conceito foi o filósofo Hegel. Depois dele vieram Marx e Engels.

A tradução da dialética hegeliana em tese, antítese e síntese causa certa confusão. Isto porque a tese é a afirmação; a antítese é a afirmação que se contrapõe à tese; mas a síntese não é a junção das duas primeiras, mas sua superação. Trata-se de uma nova afirmação (uma nova tese), uma tese mais elaborada.

A dialética hegeliana expressa o movimento das ideias, do pensamento. Esse movimento, segundo Hegel se concretiza na realidade, na história. Ou seja, o pensamento cria a realidade.

Karl Marx adota o método dialético, mas inverte o ponto de partida. Para Marx o ponto de partida é a realidade, pois é esta que cria o pensamento e não o contrário.

Exemplo de realidade:
Tese: Escola tradicional;
Antítese: Escola escolanovista;
Síntese: Escola marxista (que contem elementos da escola tradicional e da escola nova, mas não é a junção das duas, mas sua superação).

Palavras finais

Voltemos à questão que norteou nosso texto, que é verificar as semelhanças e diferenças entre diálogo e dialética.

Vimos que as semelhanças ocorrem principalmente no conceito platônico de dialética, que é derivada do conceito de diálogo. Ou seja, Platão utiliza o diálogo (conversa e discussão) como técnica de pesquisa e investigação.

O conceito moderno de dialética se afasta do conceito de diálogo, uma vez que a ênfase está no confronto de pensamentos, propostas, de realidades, de classes, sempre com a perspectiva de superação.

Fonte:
Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.


*José Benedito de Barros: Mestre em Educação (Unesp), Especialista em Direito; Bacharel em Ciências Jurídicas; Licenciado em Filosofia.


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O quilombismo de Abdias Nascimento: socialismo afro-brasileiro

O quilombismo de Abdias Nascimento

O texto abaixo retrata a proposta de sociedade elaborada por Abdias Nascimento baseada na experiência histórica dos afro-brasileiros, principalmente no que se refere aos quilombos.
O texto é uma transcrição de parte do livro O quilombismo, de Abdias Nascimento, 2ª Ed., (Brasília/Rio: Fundação Cultural Palmares/OR Editora, 2002.

No 2º Congresso de Cultura Negra das Américas (Panamá, 1989), Abdias apresena sua tese do quilombismo
Os quilombos são uma das primeiras experiências de liberdade nas Américas. Eles tinham uma estrutura comunitária baseada em valores culturais africanos. Sua organização política era democrática. Seu modelo econômico era o contrário do modelo colonial.
Em vez de produzir um item só para exportação e depender da matriz imperial, tinham uma produção agrícola diversificada que provia seu próprio sustento e mantinham relações de troca e intercâmbio com as populações circundantes.
O quilombismo propõe esse legado como referência básica de uma proposta de mobilização política da população afrodescendente nas Américas com base na sua própria experiência histórica e cultural. Vai mais longe ainda, e articula uma proposta afro-brasileira para o Estado nacional contemporâneo, um Brasil multiétnico e pluricultural.
As medidas e os princípios propostos estão no texto A B C do Quilombismo.




TRECHOS DA INTRODUÇÃO AO LIVRO O QUILOMBISMO
Como os conjuntos de políticas públicas articulados e encaminhados ao Governo pelo movimento negro em dois momentos posteriores - a Marcha Zumbi dos Palmares de 1995 e o processo da 3ª Conferência - , o quilombismo é também herdeiro de um movimento social que, já em 1945, apresentava suas propostas à Assembléia Constituinte encarregada de redemocratizar o país (Nascimento, 1982[1968]).
A singularidade de O quilombismo está no fato de apresentar uma proposta sócio-política para o Brasil, elaborada desde o ponto de vista da população afrodescendente. Num momento em que não se falava ainda em ações afirmativas ou compensatórias, nem se cogitava de políticas públicas voltadas à população negra, o autor deste livro propunha a coletividade afro-brasileira como ator e autor de um elenco de ações e de uma proposta de organização nacional para o Brasil. Assim, sustentava e concretizava a afirmação de que a questão racial é eminentemente uma questão nacional.
O quilombismo antecipa conceitos atuais como multiculturalismo, cujo conteúdo está previsto nos princípios de "igualitarismo democrático (...) compreendido no tocante a sexo, sociedade, religião, política, justiça, educação, cultura, condição racial, situação econômica, enfim, todas as expressões da vida em sociedade;" "igual tratamento de respeito e garantias de culto" para todas as religiões; ensino da história da África, das culturas, civilizações e artes africanas nas escolas.
O ambientalismo também se faz presente, no princípio que "favorece todas as formas de melhoramento ambiental que possam assegurar uma vida saudável para as crianças, as mulheres, os homens, os animais, as criaturas do mar, as plantas, as selvas, as pedras e todas as manifestações da natureza".
A propriedade coletiva da terra, o direito ao trabalho digno e remunerado, a prioridade para a criança, e a possibilidade da "transformação das relações de produção e da sociedade de modo geral por meios não violentos e democráticos" estão entre os princípios humanistas do quilombismo.
O texto antecipa, também, a mais recente inovação na abordagem das relações raciais, que parte do aspecto relacional sugerido pela ótica de gênero. A categoria "gênero" implica relação entre homem e mulher, assim deslocando o foco da tradicional "questão da mulher".
Da mesma forma, para compreender a questão racial é preciso focalizar tanto o privilégio desfrutado pelo branco como as desvantagens sofridas por negros. Já na década dos 1940 e 1950, Abdias e outros intelectuais negros, entre eles o sociólogo Guerreiro Ramos e o advogado Aguinaldo Camargo, vinham criticando o enfoque tradicional brasileiro sobre "o problema do negro".
Atribuem ao escritor Fernando Góes a sugestão, feita numa atitude de fina ironia, de se realizar um Congresso dos negros para estudar o branco. Essa sugestão e suas implicações são retomadas, e dotadas de semelhante carga de ironia crítica, no texto de O quilombismo. Trata-se de mais uma afirmação do racismo como fenômeno relacional mais amplo, profundo e complexo que aquele denotado pela constatação das chamadas "desigualdades raciais".

Nesta obra, merecem um capítulo à parte, além de serem focalizadas em todos os textos, as peripécias específicas da mulher negra, que envolvem aspectos múltiplos e complementares. A questão racial e a de gênero se tecem juntos numa teia que hoje se denomina "interseccionalidade", conceito de certa maneira antecipado no conjunto das obras do autor ao integrar a mulher negra como prioridade temática de sua análise. Mais de uma década antes de instituir-se a reserva de vagas para mulheres nas listas de candidaturas a cargos políticos, constava entre os princípios do quilombismo o seguinte:
12. Em todos os órgãos do Poder do Estado Quilombista - Legislativo, Executivo e Judiciário - a metade dos cargos de confiança, dos cargos eletivos, ou dos cargos por nomeação, deverão, por imperativo constitucional, ser ocupados por mulheres. O mesmo se aplica a todo e qualquer setor ou instituição de serviço público.
O conjunto de textos deste volume vem contribuir para o registro histórico de aspectos pouco divulgados do pan-africanismo, um dos mais importantes fenômenos do século XX. Demonstra também uma continuidade e coerência com assuntos eminentemente contemporâneos, pois reconhecemos nestes ensaios, em particular no ABC e nos Princípios do Quilombismo, a formulação de idéias e polêmicas ainda hoje emergentes.
A atualidade de O quilombismo não se esgota nos temas que apontamos. Creio que cada leitor irá vislumbrar, para além dessas questões, outras talvez mais interessantes.

Rio de Janeiro, outubro de 2001
Elisa Larkin Nascimento
BIBLIOGRAFIA

MOORE, Carlos (2002). Abdias do Nascimento e o surgimento de um pan-africanismo contemporâneo global. In: Nascimento, Abdias do. O Brasil na mira do pan-africanismo. Salvador: CEAO/ EDUFBA,.
NASCIMENTO, Abdias do (2002). O Brasil na mira do pan-africanismo. Salvador: CEAO/ EDUFBA.
__ . (1982[1968]). O negro revoltado, 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. [1ª ed. Rio de Janeiro: GRD].
__ . (1966). Carta aberta a Dacar. Tempo brasileiro, v. 4, n. 9/10, 2. Trim, 1966. [Diário do Congresso Nacional, suplemento, 20 abr., p. 15-17, lida na Câmara dos Deputados pelo então deputado Hamilton Nogueira.] In: Nascimento, Abdias do. O Brasil na mira do pan-africanismo. Salvador: CEAO/ EDUFBA, 2002.

Trechos do Prefácio do livro O Quilombismo, 2ª ed. (Brasília/ Rio: Fundação Cultural Palmares/ OR Editora, 2002).

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ABC do Quilombismo
Na trajetória histórica que esquematizamos nestas páginas, o quilombismo tem nos fornecido várias lições. Tentaremos resumi-las num ABC fundamental que nos ensina que:
a) Autoritarismo de quase 500 anos já é bastante. Não podemos, não
devemos e não queremos tolerá-lo por mais tempo. Sabemos de experiência própria que uma das práticas desse autoritarismo é o desrespeito brutal da polícia às famílias negras. Toda a sorte de arbitrariedade policial se acha fixada nas batidas que ela faz rotineiramente para manter aterrorizada e desmoralizada a comunidade afro-brasileira. Assim fica confirmada, diante dos olhos dos próprios negros, sua condição de impotência e inferioridade, já que são incapazes até mesmo de se autodefenderem ou de proteger sua família e os membros de sua respectiva comunidade. Trata-se de um estado de humilhação permanente.
b) Banto denomina-se um povo ao qual pertenceram os primeiros
africanos escravizados que vieram para o Brasil de países que hoje se chamam Angola, Congo, Zaire, Moçambique e outros. Foram os bantos os primeiros quilombolas a enfrentar em terras brasileiras o poder militar do branco escravizador.
c) Cuidar em organizar a nossa luta por nós mesmos é um imperativo
da nossa sobrevivência como um povo. Devemos por isso ter muito cuidado ao fazer alianças com outras forças políticas, sejam as ditas revolucionárias, reformistas, radicais, progressistas ou liberais. Toda e qualquer aliança deve obedecer a um interesse tático ou estratégico, e o negro precisa obrigatoriamente ter poder de decisão, a fim de não permitir que a comunidade negra seja manipulada por interesses de causas alheias à sua própria.
d) Devemos ampliar sempre a nossa frente de luta, tendo em vista: 1)
os objetivos mais distantes da transformação radical das estruturas sócio-econômicas e culturais da sociedade brasileira; 2) os interesses táticos imediatos. Nestes últimos se inclui o voto do analfabeto e a anistia aos prisioneiros políticos negros. Os prisioneiros políticos negros são aqueles que são maliciosamente fichados pela polícia como desocupados, vadios, malandros, marginais, e cujos lares são freqüentemente invadidos.
e) Ewe ou gêge, povo africano de Gana, Togo e Daomé (Benin); milhões de ewes foram escravizados no Brasil. Eles são parte do nosso povo e da nossa cultura afro-brasileira.
Ejetar o supremacismo branco do nosso meio é um dever de todo democrata. Devemos ter sempre presente que o racismo, isto é, supremacismo branco, preconceito de cor e discriminação racial, compõem o fator raça, a primeira contradição para a população de origem africana na sociedade brasileira. (Aviso aos intrigantes, aos maliciosos, aos apressados em julgar: o vocábulo raça, no sentido aqui empregado, se define somente em termos de história e cultura, e não em pureza biológica).
f) Formar os quadros do quilombismo é tão importante quanto a mobilização e a organização da comunidade negra.
g) Garantir ao povo trabalhador negro o seu lugar na hierarquia de Poder e Decisão, mantendo a sua integridade etno-cultural, é a motivação básica do quilombismo.
h) Humilhados que fomos e somos todos os negro-africanos, com todos devemos manter íntimo contato. Também com organizações africanas independentes, tanto da diáspora como do continente. São importantes e necessárias as relações com órgãos e instituições internacionais de Direitos Humanos, tais como a ONU e a UNESCO, de onde poderemos receber apoio em casos de repressão. Nunca esquecer que sempre estivemos sob a violência da oligarquia latifundiária, industrial-financeira ou militar.
i) Infalível como um fenômeno da natureza será a perseguição do poder branco ao quilombismo. Está na lógica inflexível do racismo brasileiro jamais permitir qualquer movimento libertário dos negros majoritários. Nossa existência física é uma realidade que jamais pôde ser obliterada, nem mesmo pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ao manipular os dados censitários, nos quais erradicou o fator racial e de cor dos cômputos demográficos. E quanto a nosso peso político? Simplesmente não existe. Desde a proclamação da República, a exclusão do voto ao analfabeto significa na prática a exclusão da população negra do processo político do país.
j) Jamais as organizações políticas dos afro-brasileiros deverão permitir o acesso aos brancos não-quilombistas a posições com autoridade para obstruir a ação ou influenciar as tomadas de posição teóricas e práticas em face da luta.
k) Kimbundo, língua do povo banto, veio para o Brasil com os escravos procedentes da África meridional. Essa língua exerceu notável influência sobre o português falado neste país.
l) Livrar o Brasil da industrialização artificial, tipo "milagre econômico", está nas metas do quilombismo. Neste esquema de industrialização, o negro é explorado a um tempo pelo capitalista industrial e pela classe trabalhadora classificada ou "qualificada". Como trabalhador "desqualificado" ou sem classe, ele é duplamente vítima: da raça (branca) e da classe (trabalhadora "qualificada" e/ou burguesia de qualquer raça). O quilombismo advoga para o Brasil um conhecimento científico e técnico que possibilite a genuína industrialização que represente um novo avanço de autonomia nacional. O quilombismo não aceita que se entregue a nossa reserva mineral e a nossa economia às corporações monopolistas internacionais, porém tampouco defende os interesses de uma burguesia nacional. O negro-africano foi o primeiro e o principal artífice da formação econômica do País e a riqueza nacional pertence a ele e a todo o povo brasileiro que a produz.
m) Mancha branca é o que significa a imposição miscigenadora do branco, implícita na ideologia do branqueamento, na política imigratória, no mito da "democracia racial". Tudo não passa de racionalização do supremacismo branco e do estupro histórico e atual que se pratica contra a mulher negra.
n) Nada de mais confusões: se no Brasil efetivamente houvesse igualdade de tratamento, de oportunidades, de respeito, de poder político e econômico; se o encontro entre pessoas de raças diferentes ocorresse espontâneo e livre da pressão do poder e prestígio sócio-econômico do branco; se não houvesse outros condicionamentos repressivos de caráter moral, estético e cultural, a miscigenação seria um acontecimento positivo, capaz de enriquecer o brasileiro, a sociedade, a cultura e a humanidade das pessoas.
o) Obstar o ensinamento e a prática genocidas do supremacismo branco é um fator substantivo do quilombismo.
p) Poder quilombista quer dizer: a Raça Negra no Poder. Os descendentes de africanos somam a maioria da nossa população. Portanto, o Poder Negro será um poder democrático. (Reitero aqui a advertência aos intrigantes, aos maliciosos, aos ignorantes, aos racistas: neste livro a palavra raça tem exclusiva acepção histórico-cultural. Raça biologicamente pura não existe e nunca existiu).
q) Quebrar a eficácia de certos slogans que atravessam a nossa ação contra o racismo, como aquele da luta única de todos os trabalhadores, de todo o povo ou de todos os oprimidos, é um dever do quilombista. Os privilégios raciais do branco em detrimento do negro constituem uma ideologia que vem desde o mundo antigo. A pregação da luta "única" ou "unida" não passa de outra face do desprezo que nos votam, já que não respeitam a nossa identidade e nem a especificidade do nosso problema e do nosso esforço em resolvê-lo.
r) Raça: acreditamos que todos os seres humanos pertencem à mesma espécie. Para o quilombismo, raça significa um grupo humano que possui, relativamente, idênticas características somáticas, resultantes de um complexo de fatores históricos e ambientais. Tanto a aparência física, como igualmente os traços psicológicos, de personalidade, de caráter e emotividade, sofrem a influência daquele complexo de fatores onde se somam e se complementam a genética, a sociedade, a cultura, o meio geográfico, a história. O cruzamento de diferentes grupos raciais, ou de pessoas de identidade racial diversas, está na linha dos mais legítimos interesses de sobrevivência da espécie humana.
Racismo: é a crença na inerente superioridade de uma raça sobre outra. Tal superioridade é concebida tanto no aspecto biológico, como na dimensão psico-sócio-cultural. Esta é a dimensão usualmente negligenciada ou omitida nas definições tradicionais do racismo. A elaboração teórico-científica produzida pela cultura branco-européia justificando a escravização e a inferiorização dos povos africanos constitui o exemplo eminente do racismo sem precedentes na história da humanidade.
Racismo é a primeira contradição social no caminho do negro. A esta se juntam outras, como a contradição de classes e de sexo.
s) Swahili é uma língua de origem banta, influenciada por outros idiomas, especialmente o árabe. Atualmente, o swahili é falado por mais de 20 milhões de africanos da Tanzânia, do Quênia, de Uganda, do Burundi, do Zaire, e de outros países. Os afro-brasileiros necessitam aprendê-la com urgência.
Slogan do poder público e da sociedade dominante, no Brasil, condenando reiterada e indignadamente o racismo, se tornou um recurso eficaz encobrindo a operação racista e discriminatória sistemática, de um lado, e de outro lado servindo como uma arma apontada contra nós com a finalidade de atemorizar-nos, amortecendo ou impedindo que um movimento coeso do povo afro-brasileiro obtenha a sua total libertação.
t) Todo negro ou mulato (afro-brasileiro) que aceita a "democracia racial" como uma realidade, e a miscigenação na forma vigente como positiva, está traindo a si mesmo, e se considerando um ser inferior.
u) Unanimidade é algo impossível no campo social e político. Não devemos perder o nosso tempo e a nossa energia com as críticas vindas de fora do movimento quilombista. Temos de nos preocupar e criticar a nós próprios e às nossas organizações, no sentido de ampliar a nossa consciência negra e quilombista rumo ao objetivo final: a ascensão do povo afro-brasileiro ao Poder.
v) Vênia é o que não precisamos pedir às classes dominantes para reconquistarmos os frutos do trabalho realizado pelos nossos ancestrais africanos no Brasil. Nem devemos aceitar ou assumir certas definições, "científicas" ou não, que pretendem situar o comunalismo africano e o ujamaaísmo como simples formas arcaicas de organização econômica e/ou social. Esta é outra arrogância de fundo eurocentrista que implicitamente nega às instituições nascidas na realidade histórica da África a capacidade intrínseca de desenvolvimento autônomo relativo. Nega a tais instituições a possibilidade de progresso e atualização, admitindo que a ocupação colonizadora do Continente Africano pelos europeus determinasse o concomitante desaparecimento dos valores, princípios e instituições africanas. Estas corporificariam formas não-dinâmicas, exclusivamente quietistas e imobilizadas. Tal visão petrificada da África e de suas culturas é uma ficção puramente cerebral. O quilombismo pretende resgatar dessa definição negativista o sentido de organização sócio-econômica concebido para servir à existência humana; organização que existiu na África e que os africanos escravizados trouxeram e praticaram no Brasil. A sociedade brasileira contemporânea pode se beneficiar com o projeto do quilombismo, uma alternativa nacional que se oferece em substituição ao sistema desumano do capitalismo.
x) Xingar não basta. Precisamos é de mobilização e de organização da gente negra, e de uma luta enérgica, sem pausa e sem descanso, contra as destituições que nos atingem. Até que ponto vamos assistir impotentes à cruel exterminação dos nossos irmãos e irmãs afro-brasileiros, principalmente das crianças negras deste país?
y) Yorubás (Nagô) somos também em nossa africanidade brasileira. Os iorubás são parte integrante do nosso povo, da nossa cultura, da nossa religião, da nossa luta e do nosso futuro.
z) Zumbi: fundador do quilombismo.

Propostas de ação para o Governo Brasileiro
O programa de ação quilombista incorpora, devidamente atualizadas, as seguintes propostas apresentadas por este autor ao Colóquio do 2º Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas (Festac), realizado em Lagos, Nigéria, em 1977 (ver Nascimento, Abdias, O Brasil na Mira do Pan-Africanismo, Salvador: CEAO/ EdUFBA, 2002). Naquela ocasião, o autor propôs ao Colóquio recomendar que o Governo Brasileiro
1) permita e estimule a livre e aberta discussão dos problemas dos descendentes de africanos no país; e que encoraje e financie pesquisas sobre a posição econômica, social e cultural ocupada pelos afro-brasileiros dentro da sociedade brasileira, em todos os níveis;
2) localize e publique documentos e outros fatos e informações possivelmente existentes em arquivos privados, cartórios, arquivos de câmara municipal de velhas cidades do interior, referentes ao tráfico negreiro, à escravidão e à abolição; em resumo, qualquer dado que possa ajudar a esclarecer e aprofundar a compreensão da experiência do africano escravizado e de seus descendentes;
3) inclua quesitos sobre raça ou etnia em todos os futuros censos demográficos; que em toda informação que dito governo divulgue, tanto para consumo doméstico como internacional a respeito da composição demográfica do país, não se omita o aspecto da origem racial / étnica;
4) inclua um ativo e compulsório currículo sobre a história e as culturas dos povos africanos, tanto aqueles do continente como os da diáspora; tal currículo deve abranger todos os níveis do sistema educativo: elementar, médio e superior;
5) tome medidas ativas para promover o ensino e o uso prático de línguas africanas, especialmente as línguas ki-swahili e iorubá; o mesmo em relação aos sistemas religiosos africanos e seus fundamentos artísticos; que o dito governo promova válidos programas de intercâmbio cultural com as nações africanas;
6) estude e formule compensações aos afro-brasileiros pelos séculos de escravização criminosa e decênios de discriminação racial depois da abolição; para esse fim deverá drenar recursos financeiros e outros, compulsoriamente originados da Agricultura, do Comércio e da Indústria, setores que historicamente têm sido beneficiados com a exploração do povo negro. Tais recursos constituirão um fundo destinado à construção de moradias, que satisfaçam às exigências da condição humana, em substituição às atuais habitações segregadas onde vive a maioria dos afro-brasileiros: favelas, cortiços, mocambos, porões, cabeças-de-porco, e assim por diante. O fundo sustentaria também a distribuição de terras no interior do país para os negros engajados na produção agropecuária;
7) remova os objetos da arte afro-brasileira assim como os de sentido ritual encontrados hoje em instituições de polícia, de psiquiatria, história e etnografia; e que o dito governo estabeleça museus de arte com finalidade dinâmica e pedagógica de valorização e respeito devidos à cultura afro-brasileira; de preferência, tais museus se localizariam nos estados com significativa população negra, tais como Bahia, Maranhão, Pernambuco, Alagoas, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Sergipe, Rio Grande do Sul;
8) conceda efetivo apoio, material e financeiro, à existentes e futuras associações afro-brasileiras com finalidade de pesquisa, informação e divulgação nos setores de educação, arte, cultura e posição sócio-econômica da população afro-brasileira.
9) tome medidas rigorosas e apropriadas ao efetivo cumprimento da lei Afonso Arinos, fazendo cessar o papel burlesco que tem desempenhado até agora;
10) tome ativas providências, ajuste as realidades do país, para que de nenhuma forma se permita ou possibilite a discriminação racial ou de cor no emprego, garantindo a igualdade de oportunidade que atualmente inexiste entre brancos, negros e outras nuanças étnicas.
11) exerça seu poder através de uma justa política de redistribuição da renda, tornando impraticável que, por causa da profunda desigualdade econômica imperante, o afro-brasileiro seja discriminado, embora sutil e indiretamente, em qualquer nível do sistema educativo, seja o elementar, o médio ou o universitário.
12) estimule ativamente o ingresso de negros no Instituto Rio Branco, órgão de formação de diplomatas pertencente ao Ministério de Relações Exteriores.
13) nomeie negros para o cargo de embaixador e diplomata para as Nações Unidas e junto aos Governos de outros países do mundo.
14) estimule a formação de negros como oficiais superiores das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) com promoções no serviço ativo até os postos de general, almirante, brigadeiro e marechal.
15) nomeie negros para os altos escalões do Governo Federal em seus vários ministérios e outras repartições do Executivo, incluindo órgãos superiores como o Conselho Federal de Cultura, o Conselho Federal de Educação, o Conselho de Segurança Nacional, o Tribunal de Contas.
16) estimule e encoraja a formação e o desenvolvimento de uma liderança política negra, representando os interesses específicos da população afro-brasileira no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, nas Assembléias Legislativas Estaduais e nas Câmaras Municipais; que o dito Governo nomeie negros para os cargos de juizes estaduais e federais, inclusive para o Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal Eleitoral, Superior Tribunal Militar, Superior Tribunal do Trabalho e o Tribunal Federal de Recursos.
17) concretize sua tão proclamada "amizade" com a África independente e sua tão freqüentemente manifestada posição anticolonialista, dando efetivo apoio diplomático e material aos legítimos movimentos de libertação nacional de Zimbabwe, Namíbia e África do Sul.

Alguns princípios e propósitos do quilombismo
1. O Quilombismo é um movimento político dos negros brasileiros, objetivando a implantação de um Estado Nacional Quilombista, inspirado no modelo da República dos Palmares, no século XVI, e em outros quilombos que existiram e existem no País.
2. O Estado Nacional Quilombista tem sua base numa sociedade livre, justa, igualitária e soberana. O igualitarismo democrática quilombista é compreendido no tocante a sexo, sociedade, religião, política, justiça, educação, cultura, condição racial, situação econômica, enfim, todas as expressões da vida em sociedade. O mesmo igualitarismo se aplica a todos os níveis do Poder e de instituições públicas e privadas.
3. A finalidade básica do Estado Nacional Quilombista é a de promover a felicidade do ser humano. Para atingir sua finalidade, o quilombismo acredita numa economia de base comunitário-cooperativista no setor da produção, da distribuição e da divisão dos resultados do trabalho coletivo.
4. O quilombismo considera a terra uma propriedade nacional de uso coletivo. As fábricas e outras instalações industriais, assim como todos os bens e instrumentos de produção, da mesma forma que a terra, são de propriedade e uso coletivo da sociedade. Os trabalhadores rurais ou camponeses trabalham a terra e são eles próprios os dirigentes das instituições agropecuárias. Os operários da indústria e os trabalhadores de modo geral são os produtores dos objetos industriais e os únicos responsáveis pela orientação e gerência de suas respectivas unidades de produção.
5. No quilombismo o trabalho é um direito e uma obrigação social, e os trabalhadores, que criam a riqueza agrícola e industrial da sociedade quilombista, são os únicos donos do produto do seu trabalho.
6. A criança negra tem sido a vítima predileta e indefesa da miséria material e moral imposta à comunidade afro-brasileira. Por isso, ela constitui a preocupação urgente e prioritária do quilombismo. Atendimento pré-natal, amparo à maternidade, creches, alimentação adequada, moradia higiênica e humana, são alguns dos itens relacionados à criança negra que figuram no programa de ação do movimento quilombista.
7. A educação e o ensino em todos os graus - elementar, médio e superior - serão completamente gratuitos e abertos sem distinção a todos os membros da sociedade quilombista. A história da África, das culturas, das civilizações e das artes africanas terão um lugar eminente nos currículos escolares. Criar uma Universidade Afro-Brasileira é uma necessidade dentro do programa quilombista.
8. Visando o quilombismo a fundação de uma sociedade criativa, ele procurará estimular todas as potencialidades do ser humano e sua plena realização. Combater o embrutecimento causado pelo hábito, pela miséria, pela mecanização da existência e pela burocratização das relações humanas e sociais, é um ponto fundamental. As artes em geral ocuparão um espaço básico no sistema educativo e no contexto das atividades sociais.
9. No quilombismo não haverá religiões e religiões populares, isto é, religião da elite e religiões do povo. Todas as religiões merecem igual tratamento de respeito e de garantias de culto.
10. O Estado quilombista proíbe a existência de um aparato burocrático estatal que perturbe ou interfira com a mobilidade vertical das classes trabalhadoras e marginalizadas em relação direta com os dirigentes. Na relação dialética dos membros da sociedade com as suas instituições repousa o sentido progressista e dinâmico do quilombismo.
11. A revolução quilombista é fundamentalmente anti-racista, anticapitalista, antilatifundiária, antiimperialista e antineocolonialista.
12. Em todos os órgãos do Poder do Estado Quilombista - Legislativo, Executivo e Judiciário - a metade dos cargos de confiança, dos cargos eletivos, ou dos cargos por nomeação, deverão, por imperativo constitucional, ser ocupados por mulheres. O mesmo se aplica a todo e qualquer setor ou instituição de serviço público.
13. O quilombismo considera a transformação das relações de produção, e da sociedade de modo geral, por meios não-violentos e democráticos, uma via possível.
14. É matéria urgente para o quilombismo a organização de uma instituição econômico-financeira em moldes cooperativos, capaz de assegurar a manutenção e a expansão da luta quilombista a salvo das interferências controladoras do paternalismo ou das pressões do Poder econômico.
15. O quilombismo essencialmente é um defensor da existência humana e, como tal, ele se coloca contra a poluição ecológica e favorece todas as formas de melhoramento ambiental que possam assegurar uma vida saudável para as crianças, as mulheres e os homens, os animais, as criaturas do mar, as plantas, as selvas, as pedras e todas as manifestações da natureza.
16. O Brasil é signatário da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1965. No sentido de cooperar para a concretização de objetivos tão elevados e generosos, e tendo em vista o artigo 9, números 1 e 2 da referida Convenção, o quilombismo contribuirá para a pesquisa e a elaboração de um relatório ou dossiê bianual, abrangendo todos os fatos relativos à discriminação racial ocorridos no País, a fim de auxiliar os trabalhos do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas.
Reproduzido do livro O Quilombismo, 2ª ed. (Brasília/Rio: Fundação Cultural Palmares/ OR Editor, 2002), págs. 278-290.

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QUILOMBISMO:
um conceito científico emergente do processo histórico-cultural
da população afro-brasileira
Uma proposta do autor aos seus irmãos afrodescendentes no Brasil e nas Américas, apresentada em trabalho apresentado ao 2º Congresso de Cultura Negra das Américas, Panamá, 1980.
...uma verdadeira revolução racial democrática, em nossa era, só pode dar-se sob uma condição: o negro e o mulato precisam torna-se o antibranco, para encarnarem o mais puro radicalismo democrático e mostrar aos brancos o verdadeiro sentido da revolução democrática da personalidade, da sociedade e da cultura.
- Florestan Fernandes
O Negro no Mundo dos Brancos

Memória: a antigüidade do saber negro-africano
Numa passagem anterior do texto deste livro fizemos menção à urgente necessidade do negro brasileiro em recuperar a sua memória. Esta tem sido agredida sistematicamente pela estrutura de poder e dominação há quase 500 anos. Semelhante fato tem acontecido com a memória do negro-africano, vítima, quando não de graves distorções, da mais crassa negação do seu passado histórico.
A memória dos afro-brasileiros, muito ao contrário do que afirmam aqueles historiadores convencionais de visão curta e superficial entendimento, não se inicia com o tráfico escravo e nem nos primórdios da escravidão dos africanos, no século XV. Em nosso país, a elite dominante sempre desenvolveu esforços para evitar ou impedir que o negro brasileiro, após a chamada abolição, pudesse assumir suas raízes étnicas, históricas e culturais, desta forma seccionando-o do seu tronco familial africano. A não ser em função do recente interesse do expansionismo industrial, o Brasil como norma tradicional ignorou o continente africano. Voltou suas costas à África logo que não conseguiu mais burlar a proibição do comércio da carne africana imposta pela Inglaterra aí por volta de 1850. A imigração maciça de europeus ocorreu daí a mais alguns anos, e as classes dominantes enfatizam sua intenção e ação no sentido de arrancar da mente e do coração dos descendentes escravos a imagem da África como um a lembrança positiva de nação, de pátria, de terra nativa; nunca em nosso sistema educativo se ensinou qualquer disciplina que revelasse algum apreço ou respeito às culturas, artes, línguas e religiões de origem africana. E o contato físico do afro-brasileiro com os seus irmãos no continente e na diáspora sempre foi impedido ou dificultado, entre outros obstáculos, pela carência de meios econômicos que permitissem ao negro se locomover e viajar fora do país. Porém, nenhum desses empecilhos teve o poder de obliterar completamente do nosso espírito e da nossa lembrança a presença viva da Mãe África.
As diversas estratégias e os expedientes que se utilizam contra a memória do negro-africano têm sofrido, ultimamente, profunda erosão e irreparável descrédito. Este trabalho é fruto da dedicação e competência de alguns africanos, a um tempo estudiosos, pesquisadores, cientistas, filósofos, e criadores de literatura e arte, pessoas do continente africano e da diáspora africana. Cheikh Anta Diop, do Senegal; Chancellor Williams, dos Estados Unidos; Ivan Van Sertima e George M. James, da Guiana; Yosef Ben-Jochannam, da Etiópia; Theophile Obenga, do Congo-Brazzaville; Wole Soyinka e Wande Abimbola, da Nigéria, figuram entre os muitos que estão ativos, produzindo obras fundamentais para a África contemporânea e futura. Em campos diferentes, e sob perspectivas diversas, o esforço desses eminentes irmãos africanos se canaliza rumo a exorcizar as falsidades, distorções e negações que há tanto tempo se vêm tecendo com o intuito de velar ou apagar a memória do saber, do conhecimento científico e filosófico, e das realizações dos povos de origem negro-africana. A memória do negro brasileiro é parte e partícipe nesse esforço de reconstrução de um passado ao qual todos os afro-brasileiros estão ligados. Ter um passado é ter uma conseqüente responsabilidade nos destinos e no futuro da nação negro-africana, mesmo enquanto preservando a nossa condição de edificadores deste país e de cidadãos genuínos do Brasil.
A obra fundamental de Cheikh Anta Diop, principalmente seu livro The African Origin of Civilization (versão em inglês de seleções de Nations Nègres et Culture e Antériorité des Civilisations Nègres, originalmente publicados em francês), apresenta uma confrontação radical e um desafio irrespondível à arrogância intelectual, desonestidade científica e carência ética do mundo acadêmico ocidental ao tratar os povos, civilizações e culturas produzidas pela África. Utilizando-se dos recursos científicos euro-ocidentais - Diop é químico, diretor do laboratório de radiocarbono do IFAN, em Dacar, além de egiptólogo, historiador e lingüista - este sábio está reconstruindo a significação e os valores da antigas culturas e civilizações erigidas pelos negro-africanos, as quais por longo tempo têm permanecido obnubiladas pelas manipulações, mentiras, distorções e roubos. São os bens de cultura e civilização e de artes criados pelos nossos antepassados no Egito antigo, os quais eram negros e não um povo de origem branco (ou vermelho escuro) conforme os cientistas ocidentais do século XIX proclamavam com ênfase tão mentirosa quanto interessada. Vejamos como a esse respeito se manifesta Diop:
O fruto moral da sua civilização está para ser contado entre os bens do mundo negro. Ao invés de se apresentar à história como um devedor insolvente, este mundo negro é o próprio iniciador da civilização "ocidental" ostentada hoje diante dos nossos olhos. Matemática pitagórica, a teoria dos quatro elementos de Thales de Mileto, materialismo epicureano, idealismo platônico, judaísmo, islamismo, e a ciência moderna, estão enraizados na cosmogonia e na ciência egípcias. Só temos que meditar sobre Osíris, o deus-redentor, que se sacrifica, morre e é ressuscitado, uma figura essencialmente identificável a Cristo (1974: XIV).
As afirmações de Diop se baseiam em rigorosa pesquisa, em rigoroso exame e rigorosa conclusão, não deixando margem para dúvidas ou discussões. E isto longe de pretender aquele dogmatismo que sempre caracteriza as certezas "científicas" do mundo ocidental. O que Diop fez foi simplesmente derruir as estruturas supostamente definitivas do conhecimento "universal" no que respeita à antigüidade egípcia e grega. Gostem ou não, os ocidentais têm de tragar verdades como esta: "...quatro séculos antes da publicação de A mentalidade primitiva de Lévy-Bruhl, a África negra muçulmana comentava a lógica formal de Aristóteles (que ele plagiou do Egito negro) e demonstrava-se especialista em dialética" (Diop, 1963: 212).
E isto, não esqueçamos, acontecia quase 500 anos antes que ao menos tivessem nascido Hegel ou Karl Marx...
Diop revolve todo o processo da mistificação de um Egito negro que se tornou branco por artes da magia européia dos egiptólogos. Após a campanha militar de Bonaparte no Egito, em 1799, e depois que os hieróglifos da pedra Rosetta foram decifrados por Champollion, o jovem, em 1822, os egiptólogos se desarticularam atônitos diante da grandiosidade das descobertas reveladas.
Eles geralmente a reconheceram como a mais antiga civilização, a que tinha engendrado todas as outras. Mas com o imperialismo, sendo o que é, tornou-se crescentemente "inadmissível" continuar aceitando a teoria evidente até então - de um Egito negro. O nascimento da egiptologia foi assim marcado pela necessidade de destruir a memória de um Egito negro, a qualquer custo, em todas as mentes. Daí em diante, o denominador comum de todas as teses dos egiptólogos, sua relação íntima e profunda afinidade, pode ser caracterizado como uma tentativa desesperada de refutar essa opinião [do Egito ser negro]. Quase todos os egiptólogos enfatizaram sua falsidade como uma questão fechada (1974: 45).
Desta posição intelectual em diante, como procederam os egiptólogos? Como negar a realidade egípcia, essencialmente negra, a qual não apresentava contradições científicas realmente confiáveis ou válidas? Não possuindo argumentos ou razões para refutar a verdade, exposta pelos antigos que viram o Egito de perto, alguns egiptólogos preferiram guardar silêncio sobre a questão; outros, mais obsessivos em seu irracionalismo, optaram pelo caminho da rejeição dogmática, infundada e indignada. De um modo geral, todos "se lamentavam que um povo tão normal como os egípcios antigos pudessem ter feito tão grave erro e desta forma criar tantas dificuldades e delicados problemas para os especialistas modernos" (Diop, 1974: 45).
A pretensiosidade eurocentrista nesse episódio se expõe de corpo inteiro. Lembra o exemplo de um típico escritor do "progressismo" brasileiro, o racista Monteiro Lobato, quando acusa o negro-africano de haver provocado graves problemas para o Brasil com a miscigenação, a tão celebrada mistura de sangues negro e branco... Mas voltemos aos egiptologistas: eles prosseguiram obstinadamente o vão esforço de provar "cientificamente" uma origem branca para a antiga civilização do Egito negro.
Quanto a Diop, compassivo e humano diante do feroz dogmatismo dos egiptólogos brancos, revelou bastante paciência e gentileza explicando-lhes que não alegava superioridade racial ou qualquer gênio especificamente negro naquela constatação puramente científica de que a civilização do Egito antigo fora erigida por um povo negro. O sucesso, explicou-lhe Diop, resultou de fatores históricos, de condições mesológicas - clima, recursos naturais, e assim por diante - somados a outros elementos não-rácicos. Tanto assim foi que, mesmo tendo-se expandido por toda a África negra, do centro e do oeste do continente, a civilização egípcia, ao embate de outras influências e situação histórica diversa, entrou num processo de desintegração e franco retrocesso. O importante é sabermos alguns dos fatores que contribuíram para a edificação da civilização egípcia, entre os quais Diop enumera estes: resultado de acidente geográfico que condicionou o desenvolvimento político-social dos povos que viviam às margens do vale do Nilo; as inundações que forçavam providências coletivas de defesa e sobrevivência, situação que favorecia a unidade e excluía o egoísmo individual ou pessoal. Nesse contexto surgiu a necessidade de uma autoridade central coordenadora da vida e das atividades em comum. A invenção da geometria nasceu da necessidade da divisão geográfica, e todos os demais avanços foram obtidos no esforço de atender uma carência requerida pela sociedade.
Um pormenor interessa particularmente à memória do negro brasileiro: aquele onde Diop menciona as relações do antigo Egito com a África negra, de modo específico com os iorubás. Parece que tais relações foram tão íntimas a ponto de se poder "considerar como um fato histórico a possessão conjunta do mesmo habitat primitivo pelos iorubás e egípcios". Diop levanta a hipótese de que a latinização de Horus, filhos de Osíris e Ísis, resultou no apelativo Orixá. Seguindo essa pista de estudo comparativo, ao nível da lingüística e outras disciplinas, Diop cita J. Olumide Lucas em The religion of the Yorubas, o qual traça os laços egípcios do seu povo iorubá, concluindo que tudo leva à verificação do seguinte: a) uma similaridade ou identidade de linguagem; b) uma similaridade ou identidade de crenças religiosas; c) uma similaridade ou identidade de idéias e práticas religiosas; d) uma sobrevivência de costumes, lugares, nomes de pessoas, objetos, práticas, e assim por diante (Diop, 1974: 184; Lucas, 1978: 18).
Meu objetivo aqui é o de apenas chamar a atenção para esta significativa dimensão da antigüidade da memória afro-brasileira. Este é um assunto extenso e complexo, cuja seriedade requer e merece pesquisa e reflexão aprofundadas, no contexto de uma revisão crítica das definições e dos julgamentos pejorativos que há séculos pesam sobre os povos negro-africanos.
Consciência negra e sentimento quilombista
Numa perspectiva mais restrita, a memória do negro brasileiro atinge uma etapa histórica decisiva no período escravocrata que se inicia por volta de 1500, logo após a "descoberta" do território e os atos inaugurais dos portugueses tendo em vista a colonização do país. Excetuando os índios, o africano escravizado foi o primeiro e único trabalhador, durante três séculos e meio, a erguer as estruturas deste país chamado Brasil. Creio ser dispensável evocar neste instante o chão que o africano regou com seu suor, lembrar ainda uma vez mais os canaviais, os algodoais, o ouro, o diamante e a prata, os cafezais, e todos os demais elementos da formação brasileira que se nutriram no sangue martirizado do escravo. O negro está longe de ser um arrivista ou um corpo estranho: ele é o próprio corpo e alma deste país. Mas a despeito dessa realidade histórica inegável e incontraditável, os africanos e seus descendentes nunca foram e não são tratados como iguais pelos segmentos minoritários brancos que complementam o quadro democrático nacional. Estes têm mantido a exclusividade do poder, do bem-estar e da renda nacional.
É escandaloso notar que porções significativas da população brasileira de origem européia começaram a chegar ao Brasil nos fins do século passado como imigrantes pobres e necessitados. Imediatamente passaram a desfrutar de privilégios que a sociedade convencional do país lhes concedeu como parceiros de raça e de supremacismo eurocentrista. Tais imigrantes não demonstraram nem escrúpulo e nem dificuldades em assumir os preconceitos raciais contra o negro-africano, vigentes aqui e na Europa, se beneficiando deles e preenchendo as vagas no mercado de trabalho que se negava aos ex-escravos e seus descendentes. Estes foram literalmente expulsos do sistema de trabalho e produção à medida que se aproximava a data "abolicionista" de 13 de maio de 1888.
Tendo-se em vista a condição atual do negro à margem do emprego ou degradado no semi-emprego e subemprego; levando-se em conta a segregação residencial que lhe é imposta pelo duplo motivo de condição racial e pobreza, destinando-lhe como áreas de moradias ghettos de várias denominações: favelas, alagados, porões, mocambos, invasões, conjuntos populares ou "residenciais"; considerando-se a permanente brutalidade policial e as prisões arbitrárias motivadas pela cor de sua pele, compreende-se por que todo negro consciente não tem a menor esperança de que uma mudança progressista possa ocorrer espontaneamente em benefício da comunidade afro-brasileira. As favelas pululam em todas as grandes cidades: Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Recife, Brasília, podem se apontadas como exemplos. A cifra dos favelados exprime em si mesma a desgraça crescente no quociente alto que apresenta. Para ilustrar lembro os dados do Departamento de Serviço Social de São Paulo, publicados pelo O Estado de São Paulo de 16 de agosto de 1970, os quais denunciavam que mais de 60% da população paulistana vive em condições precaríssimas; se não esquecermos de que São Paulo é a cidade brasileira melhor servida de instalações de água e esgoto, poderemos fazer uma idéia mais aproximada das impossíveis condições higiênicas em que vegetam os afro-brasileiros por esse país afora. Em Brasília, segundo a revista Veja de 8 de outubro de 1969, entre os 510.000 habitantes da capital federal, 80.000 eram favelados. Enquanto no Rio de Janeiro a porcentagem de favelados oscila entre 40 a 50 por cento da população. Os racistas de qualquer cor, sob a máscara de "apenas reacionários, dirão que os ghettos existem disfarçados em favelas em várias cidades européias, não sendo um fenômeno tipicamente brasileiro. Certo. A tipicidade está em que a maioria absoluta dos favelados brasileiros, cerca de 95%, são de origem africana. Este detalhe caracteriza uma irrefutável segregação racial de fato. Isto no que concerne à população negra urbana. Entretanto, cumpre ressaltar que a maioria dos descendentes de escravos ainda vegeta nas zonas rurais, escrava de uma existência parasitária, numa situação de desamparo total. Pode-se dizer que não vivem uma vida de seres humanos.
E como sobrevive o segmento citadino da população afro-brasileira? Constitui uma categoria denominada pelo Anuário Estatístico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de "empregados em serviços". Uma estranha qualificação ou eufemismo para o subemprego e o semi-emprego, que rotula quase quatro milhões e meio de brasileiros. (Quartim, 1971: 152). Tal eufemismo surpreende porque nessa classificação se incluem os empregados sem ordenado fixo, isto é, biscateiros vivendo a pequena aventura diária de engraxar sapatos, lavar carros, entregar encomendas, transmitir recado, a venda ambulante de doces, frutas ou objetos, tudo à base da remuneração miserável do centavo.
Este é um retrato imperfeito de uma situação mais grave, a qual tem sido realidade em todo o decorrer de nossa história. Desta realidade é que nasce a necessidade urgente ao negro de defender sua sobrevivência e de assegurar a sua existência de ser. Os quilombos resultaram dessa exigência vital dos africanos escravizados, no esforço de resgatar sua liberdade e dignidade através da fuga ao cativeiro e da organização de uma sociedade livre. A multiplicação dos quilombos fez deles um autêntico movimento amplo e permanente. Aparentemente um acidente esporádico no começo, rapidamente se transformou de uma improvisação de emergência em metódica e constante vivência dos descendentes de africanos que se recusavam à submissão, à exploração e à violência do sistema escravista. O quilombismo se estruturava em formas associativas que tanto podiam estar localizadas no seio de florestas de difícil acesso que facilitava sua defesa e sua organização econômico-social própria, como também assumiram modelos de organizações permitidas ou toleradas, freqüentemente com ostensivas finalidades religiosas (católicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio mútuo. Não importam as aparências e os objetivos declarados: fundamentalmente, todas elas preencheram uma importante função social para a comunidade negra, desempenhando um papel relevante na sustentação da comunidade africana. Genuínos focos de resistência física e cultural. Objetivamente, essa rede de associações, irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros, centros, tendas, afochés, escolas de samba, gafieiras foram e são os quilombos legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei se erguem os quilombos revelados que conhecemos. Porém tanto os permitidos quanto os "ilegais" foram uma unidade, uma única afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história. A este complexo de significações, a esta praxis afro-brasileira, eu denomino de quilombismo.
A constatação fácil do enorme número de organizações que se intitularam no passado e se intitulam no presente de Quilombo e/ou Palmares testemunha o quanto o exemplo quilombista significa como valor dinâmico na estratégia e na tática de sobrevivência e progresso das comunidades de origem africana. Com efeito, o quilombismo tem se revelado fator capaz de mobilizar disciplinadamente o povo afro-brasileiro por causa do profundo apelo psicossocial cujas raízes estão entranhadas na história, na cultura e na vivência dos afro-brasileiros. O Movimento Negro Unificado Contra o Racismo e a Discriminação Racial assim registra seu conceito quilombola ao definir o "Dia da Consciência Negra":
Nós, negros brasileiros, orgulhosos por descendermos de Zumbi, líder da República Negra dos Palmares, que existiu no Estado de Alagoas, de 1595 a 1695, desafiando o domínio português e até holandês, nos reunimos hoje, após 283 anos, para declarar a todo o povo brasileiro nossa verdadeira e efetiva data: 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra! Dia da morte do grande líder negro nacional, Zumbi, responsável pela primeira e única tentativa brasileira de estabelecer uma sociedade democrática, ou seja, livre, e em que todos - negros, índios e brancos - realizaram um grande avanço político, econômico e social. Tentativa esta que sempre esteve presente em todos os quilombos (1978).
A continuidade dessa consciência de luta político-social se estende por todos os Estados onde existe significativa população de origem africana. O modelo quilombista vem atuando como idéia-força, energia que inspira modelos de organização dinâmica desde o século XV. Nessa dinâmica quase sempre heróica, o quilombismo está em constante reatualização, atendendo exigências do tempo histórico e situações do meio geográfico. Circunstância que impôs aos quilombos diferenças em suas formas organizativas. Porém no essencial se igualavam. Foram (e são), nas palavras da historiadora Beatriz Nascimento, "um local onde a liberdade era praticada, onde os laços étnicos e ancestrais eram revigorados" (1979: 17). Esta estudiosa mulher negra afirma ter o quilombo exercido "um papel fundamental na consciência histórica dos negros" (1979: 18).
Percebe-se o ideal quilombista difuso, porém consistente, permeando todos os níveis da vida negra e os mais recônditos meandros e/ou refolhos da personalidade afro-brasileira. Um ideal forte e denso que via de regra permanece reprimido pelas estruturas dominantes, outras vezes é sublimado através dos vários mecanismos de defesa fornecidos pelo inconsciente individual ou coletivo. Mas também acontece às vezes o negro se apropriar dos mecanismos que a sociedade dominante concedeu ao seu protagonismo com a maliciosa intenção de controlá-lo. Nessa reversão do alvo, o negro se utiliza dos propósitos não-confessados de domesticação qual boomerang ofensivo. É o exemplo que nos deixou Candeia, compositor de sambas e negro inteligentemente dedicado à redenção do seu povo. Organizou a Escola de Samba Quilombo, nos subúrbios do Rio de Janeiro, com um profundo senso do valor político-social do samba em função do progresso da coletividade negra. Este importante membro da família quilombista faleceu recentemente, mas até o instante derradeiro ele manteve uma lúcida visão dos objetivos da entidade que fundou e presidiu no rumo dos interesses mais legítimos do povo afro-brasileiro. Basta folhear o livro de sua autoria e de Isnard, e ler trechos como este:
Quilombo - Grêmio Recreativo Arte Negra (...) nasceu da necessidade de se preservar toda a influência do afro na cultura brasileira. Pretendemos chamar a atenção do povo brasileiro para as raízes da arte negra brasileira. A posição do "Quilombo" é principalmente contrária à importação de produtos culturais prontos e acabados produzidos no exterior (1978: 87-88).
Neste último trecho, os autores tocam num ponto importante do quilombismo: o caráter nacionalista do movimento. Nacionalismo aqui não deve ser traduzido como xenofobismo. Sendo o quilombismo uma luta antiimperialista, se articula ao pan-africanismo e sustenta radical solidariedade com todos os povos em luta contra a exploração, a opressão, o racismo e as desigualdades motivadas por raça, cor, religião ou ideologia.
Num folheto intitulado 90 anos de abolição, publicado pela Escola de Samba Quilombo, Candeia registra que "foi através do Quilombo, e não do movimento abolicionista, que se desenvolveu a luta dos negros contra a escravatura" (1978: 7).
E o movimento quilombista está longe de haver esgotado seu papel histórico. Está tão vivo hoje quanto no passado, pois a situação das camadas negras continua a mesma, com pequenas alterações de superfície. Candeia prossegue:
Os quilombos eram violentamente reprimidos, não só pela força do governo, mas também por indivíduos interessados no lucro que teriam devolvendo os fugitivos a seus donos. Esses especialistas em caçar escravos fugidos ganharam o nome de triste memória: capitães-do-mato (1978: 5).
A citação dos capitães-do-mato é importante: via de regra eram eles mulatos, isto é, negros de pele clara assimilados pela classe dominante. Em nossos dias ainda podemos encontrar centenas, milhares, desses negros que vivem uma existência ambígua. Não pelo fato de possuírem o sangue do branco opressor, mas porque internalizando como positiva a ideologia do embranquecimento (o branco é o superior e o negro o inferior) se distanciam das realidades do seu povo e se prestam ao papel de auxiliares das forças repressivas do supremacismo branco. E tanto ontem quanto hoje, os serviços que se prestam à repressão se traduzem em lucro social e lucro pecuniário.
Nosso Brasil é tão vasto, ainda tão desconhecido e despovoado que podemos supor, sem grande margem de erro, que existem muitas comunidades negras vivendo isoladas, sem ligação ostensiva com as pequenas cidades e vilas do interior do país. Serão diminutas localidades rurais, desligadas do fluxo principal da vida do país, e mantendo estilos e hábitos de vida africana, ou quase, sob um regime de agricultura coletiva de subsistência ou sobrevivência. Podem até mesmo usar o idioma original trazido da África, estropiado, é bem verdade, porém mesmo assim linguagem africana conservada na espécie de quilombismo em que vivem. Às vezes podem até ganhar notícias extensas nas páginas da imprensa, conforme ocorreu à comunidade do Cafundó, situada nas imediações de Salto de Pirapora, no Estado de São Paulo. Os membros da comunidade herdaram uma fazenda deixada pelo antigo senhor, e não faz muito tempo as terras estavam sendo invadidas por latifúndiários das vizinhanças. Obviamente brancos, esse latifundários, com mentalidade escravocrata, não podem aceitar que um grupo de descendentes africanos possua uma propriedade imobiliária. Este não é um fato único, mas foi aquele que ganhou maior publicidade, mobilizando os negros paulistas em sua defesa. Ao visitar pela primeira vez a cidade de Conceição de Mato Dentro, em Minas Gerais, em 1975, tive oportunidade de me encontrar com um dos moradores de uma comunidade negra daquelas redondezas semelhante a Cafundó. Também herdaram a propriedade, segundo me relatou o dito morador, negro de 104 anos, ágil de inteligência e de pernas. Caminhava quase todos os dias cerca de 10 quilômetros a pé, e assim mantinha o contato do seu povo com a cidadezinha de Mato Dentro.
O avanço de latifundiários e de especuladores de imóveis nas terras da gente negra está pedindo uma investigação ampla e funda. Este é um fenômeno que ocorre tanto nas zonas rurais como nas cidades. Vale a pena transcrever, a respeito, trechos de uma nota estampada em Veja, seção "Cidades", a 10 de dezembro de 1975, página 52:
Desde sua remota aparição em Salvador, há quase dois séculos, os terreiros de candomblé foram sempre fustigados por severas restrições policiais. E, pelo menos nos últimos vinte anos, o cerco movido pela polícia foi sensivelmente fortalecido por um poderoso aliado - a expansão imobiliária, que se estendeu às áreas distantes do centro da cidade onde ressoavam os atabaques. Mais ainda, em nenhum momento a Prefeitura esboçou barricadas legais para proteger esses redutos da cultura afro-brasileira - embora a capital baiana arrecadasse gordas divisas com a exploração do turismo fomentado pela magia dos orixás (...) E nunca se soube da aplicação de sanções para os inescrupulosos proprietários de terrenos vizinhos às casas de culto, que se apossam impunemente de áreas dos terreiros. Foi assim que, em poucos anos, a Sociedade Beneficente São Jorge do Engenho Velho, ou terreiro da Casa Branca, acabou perdendo metade de sua antiga área de 7.500 metros quadrados. Mas infeliz ainda, a Sociedade São Bartolomeu do Engenho Velho da Federação, ou candomblé de Bogum, assiste impotente à veloz redução do terreno sagrado onde se ergue a mítica "árvore de Azaudonor" trazida da África há 150 anos e periodicamente agredida por um vizinho que insiste em podar seus galhos mais frondosos.
Eis como a sociedade dominante apertou o cerco da destituição, da fome e do genocídio dos descendentes africanos. Até os poucos, as raras exceções que por um milagre conseguiram ultrapassar a fronteira implacável da miséria, ou as instituições religiosas que ocupavam há séculos determinado espaço, se vêem de uma hora para outra invadidos em suas propriedades e usurpados em suas terras!
Quilombismo: um conceito científico histórico-social
Para os africanos escravizados assim como para os seus descendentes "libertos", tanto o Estado colonial português quanto o Brasil - colônia, império e república - têm uma única e idêntica significação: um estado de terror organizado contra eles. Um Estado por assim dizer natural em sua iniqüidade fundamental, um Estado naturalmente ilegítimo. Porque tem sido a cristalização político-social dos interesses exclusivos de um segmento elitista, cuja aspiração é atingir o status ário-européia em estética racial, em padrão de cultura e civilização. Este segmento tem sido o maior beneficiário da espoliação que em todos os sentidos tem vitimado o povo afro-brasileiro ao longo da nossa história. Conscientes da extensão e profundidade dos problemas que enfrenta, o negro sabe que sua oposição ao que aí está não se esgota na obtenção de pequenas reivindicações de caráter empregatício ou de direitos civis, no âmbito da dominante sociedade capitalista-burguesa e sua decorrente classe média organizada. O negro já compreendeu que terá de derrotar todas as componentes do sistema ou estrutura vigente, inclusive a sua intelligentsia responsável pela cobertura ideológica da opressão através da teorização "científica" seja de sua inferioridade biossocial, da miscigenação sutilmente compulsória ou do mito "democracia racial". Essa intelligentsia, aliada a mentores europeus e norte-americanos, fabricou uma "ciência" histórica ou humana que ajudou a desumanização dos africanos e seus descendentes para servir os interesses dos opressores eurocentristas. Uma ciência histórica que não serve à história do povo de que trata está negando-se a si mesma. Trata-se de uma presunção cientificista e não de uma ciência histórica verdadeira.
Como poderiam as ciências humanas, históricas - etnologia, economia, história, antropologia, sociologia, psicologia, e outras - nascidas, cultivadas e definidas para povos e contextos sócio-econômicos diferentes, prestar útil e eficaz colaboração ao conhecimento do negro, sua realidade existencial, seus problemas e aspirações e projetos? Seria a ciência social elaborada na Europa ou nos Estados Unidos tão universal em sua aplicação? Os povos negros conhecem na própria carne a falaciosidade do universalismo e da isenção dessa "ciência". Aliás, a idéia de uma ciência histórica pura e universal está ultrapassada. O conhecimento científico que os negros necessitam é aquele que os ajude a formular teoricamente - de forma sistemática e consistente - sua experiência de quase 500 anos de opressão. Haverá erros ou equívocos inevitáveis em nossa busca de racionalidade do nosso sistema de valores, em nosso esforço de autodefinição de nós mesmos e de nosso caminho futuro. Não importa. Durante séculos temos carregado o peso dos crimes e dos erros do eurocentrismo "científico", os seus dogmas impostos em nossa carne como marcas ígneas da verdade definitiva. Agora devolvemos ao obstinado segmento "branco" da sociedade brasileira as suas mentiras, a sua ideologia de supremacismo europeu, a lavagem cerebral que pretendia tirar a nossa humanidade, a nossa identidade, a nossa dignidade, a nossa liberdade. Proclamando a falência da colonização mental eurocentrista, celebramos o advento da libertação quilombista.
O negro tragou até à última gota os venenos da submissão imposta pelo escravismo, perpetuada pela estrutura do racismo psicossócio-cultural que mantém atuando até os dias de hoje. Os negros têm como projeto coletivo a ereção de uma sociedade fundada na justiça, na igualdade e no respeito a todos os seres humanos, na liberdade; uma sociedade cuja natureza intrínseca torne impossível a exploração econômica e o racismo. Uma democracia autêntica, fundada pelos destituídos e os deserdados deste país, aos quais não interessa a simples restauração de tipos e formas caducas de instituições políticas, sociais e econômicas as quais serviriam unicamente para procrastinar o advento de nossa emancipação total e definitiva, que somente pode vir com a transformação radical das estruturas vigentes. Cabe mais uma vez insistir: não nos interessa a proposta de uma adaptação aos moldes da sociedade capitalista e de classes. Esta não é a solução que devemos aceitar como se fora mandamento inelutável. Confiamos na idoneidade mental do negro, e acreditamos na reinvenção de nós mesmos e de nossa história. Reinvenção de um caminho afro-brasileiro de vida fundado em sua experiência histórica, na utilização do conhecimento crítico e inventivo de suas instituições golpeadas pelo colonialismo e o racismo. Enfim, reconstruir no presente uma sociedade dirigida ao futuro, mas levando em conta o que ainda for útil e positivo no acervo do passado. Um futuro melhor para o negro tanto exige uma nova realidade em termos de pão, moradia, saúde, trabalho, como requer um outro clima moral e espiritual de respeito às componentes mais sensíveis da personalidade negra expressas em sua religião, cultura, história, costumes e outras formas.
A segurança de um futuro melhor para a população negra não se inclui nos dispositivos da chamada "lei de segurança nacional". Esta é a segurança das elites dominantes, dos seus lucros e compromissos com o capital interno ou estrangeiro, privado ou estatal. A segurança da "ordem" econômica, social e política em vigor é aquela associada e inseparável das teorias "científicas" e dos parâmetros culturais e ideológicos engendrados pelos opressores e exploradores tradicionais da população afro-brasileira.
Tampouco nos interessa o uso ou a adoção de slogans ou palavras de ordem de um esquerdismo ou democratismo vindos de fora. A revolução negra produz seus historiadores, sociólogos, antropólogos, pensadores, filósofos e cientistas políticos. Tal imperativo se aplica também ao movimento afro-brasileiro.
Um instrumento conceitual operativo se coloca, pois, na pauta das necessidades imediatas da gente negra brasileira. O qual não deve e não pode ser fruto de uma maquinação cerebral arbitrária, falsa e abstrata. Nem tampouco um elenco de princípios importados, elaborados a partir de contextos e de realidades diferentes. A cristalização dos nossos conceitos, definições ou princípios deve exprimir a vivência de cultura e de praxis da coletividade negra. Incorporar nossa integridade de ser total, em nosso tempo histórico, enriquecendo e aumentando nossa capacidade de luta.
Precisamos e devemos codificar nossa experiência por nós mesmos, sistematizá-la, interpretá-la e tirar desse ato todas as lições teóricas e práticas conforme a perspectiva exclusiva dos interesses da população negra e de sua respectiva visão de futuro. Esta se apresenta como a tarefa da atual geração afro-brasileira: edificar a ciência histórico-humanista do quilombismo.
Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial. Repetimos que a sociedade quilombola representa uma etapa no progresso humano e sócio-político em termos de igualitarismo econômico. Os precedentes históricos conhecidos confirmam esta colocação. Como sistema econômico o quilombismo tem sido a adequação ao meio brasileiro do comunitarismo ou ujamaaísmo da tradição africana. Em tal sistema as relações de produção diferem basicamente daquelas prevalecentes na economia espoliativa do trabalho, chamada capitalismo, fundada na razão do lucro a qualquer custo. Compasso e ritmo do quilombismo se conjugam aos mecanismos operativos, articulando os diversos níveis de uma vida coletiva cuja dialética interação propõe e assegura a realização completa do ser humano. Nem propriedade privada da terra, dos meios de produção e de outros elementos da natureza. Todos os fatores e elementos básicos são de propriedade e uso coletivo. Uma sociedade criativa, no seio da qual o trabalho não se define como uma forma de castigo, opressão ou exploração; o trabalho é antes uma forma de libertação humana que o cidadão desfruta como um direito e uma obrigação social. Liberto da exploração e do jugo embrutecedor da produção tecno-capitalista, a desgraça do trabalhador deixará de ser o sustentáculo de uma sociedade burguesa parasitária que se regozija no ócio de seus jogos e futilidades.
Os quilombolas dos séculos XV, XVI, XVII, XVIII e XIX nos legaram um patrimônio de prática quilombista. Cumpre aos negros atuais manter e ampliar a cultura afro-brasileira de resistência ao genocídio e de afirmação da sua verdade. Um método de análise, compreensão e definição de uma experiência concreta, o quilombismo expressa a ciência do sangue escravo, do suor que este derramou enquanto pés e mãos edificadores da economia deste país. Um futuro de melhor qualidade para a população afro-brasileira só poderá ocorrer pelo esforço enérgico de organização e mobilização coletiva, tanto da população negra como das suas inteligências e capacidades escolarizadas, para a enorme batalha no fronte da criação teórico-científica. Uma teoria científica inextricavelmente fundida à nossa prática histórica que efetivamente contribua à salvação da comunidade negra, a qual vem sendo inexoravelmente exterminado. Seja pela matança direta da fome, seja pela miscigenação compulsória, pela assimilação do negro aos padrões e ideais ilusórios do lucro ocidental. Não permitamos que a derrocada desse mundo racista, individualista e inimigo da felicidade humana afete a existência futura daqueles que efetiva e plenamente nunca a ele pertenceram: nós, negro-africanos e afro-brasileiros.
Condenada a sobreviver rodeada ou permeada de hostilidade, a sociedade afro-brasileira tem persistido nesses quase 500 anos sob o signo de permanente tensão. Tensão esta que consubstancia a essência e o processo do quilombismo.
Assegurar a condição humana do povo afro-brasileiro, há tantos séculos tratado e definido de forma humilhante e opressiva, é o fundamento ético do quilombismo. Deve-se assim compreender a subordinação do quilombismo ao conceito que define o ser humano como o seu objeto e sujeito científico, dentro de uma concepção de mundo e de existência na qual a ciência constitui uma entre outras vias do conhecimento.
Estudos sobre o branco
Devemos impedir por todos os meios, nós os descendentes negro-africanos, que a confusão e a falência das bases do chamado mundo ocidental branco derroguem aquilo que há de mais valioso e profundo em nossa natureza, cultura e experiência. Conhecer o inimigo e/ou adversário, desde dentro, significa atuar em autodefesa. Conseqüentemente devemos nos preparar para estudar o branco e seus impulsos agressivos.
Aqui estou reatando uma idéia antiga do escritor Fernando Góes, mais tarde retomada por Guerreiro Ramos. Na mesma direção, também houve constante pregação na militância do saudoso irmão negro Aguinaldo de Oliveira Camargo; no auditório do 1º Congresso do Negro Brasileiro (Rio, 1950), ressoaram estas palavras sábias de Aguinaldo: "Reeduquemos o branco para que ele aprenda a respeitar a criança negra, a respeitar o doutor negro, a empregada negra, para que aprenda a casar-se com a mulher negra" apud Nascimento, 1968: 231).
É na mesma linha de raciocínio que se situa mais uma observação de Cheikh Anta Diop; em vários pontos-chaves de sua obra, Diop abordou a questão, referindo-se às idiossincrasias dos branco europeus:
Não há absolutamente dúvidas de que a raça branca, a qual apareceu pela primeira vez durante o Alto Paleolítico - em torno de 20.000 antes de Cristo - , era o produto de um processo de despigmentação. (...) não há dúvida de que o panorama cultural desses protobrancos era eventualmente condicionado durante a época glacial pelas condições extremamente duras do seu "berço nórdico", até o momento de seus movimentos migratórios rumo às regiões meridionais, em torno de 1.500 anos antes de Cristo. Moldados por seu berço ambiental, aqueles primeiros nômades brancos desenvolveram, sem dúvida, uma consciência social típica do ambiente hostil ao qual estiveram confinados por um longo período. A xenofobia se fixou como um dos traços de sua consciência social. A hierarquização patriarcal outra. (...) Penso que a Dra. Welsing identificou corretamente a origem do racismo num definitivo reflexo defensivo. Creio que o racismo seja uma reação de medo, mais freqüentemente inconfesso que não. (Diop, 1986: 34).
Assim, a origem da sócio-psicopatologia do branco não se radica em sua natureza biológica. Ao contrário, trata-se de um fenômeno de caráter histórico: os brancos tinham medo porque, na época dessas migrações, se sentiam inferiores em número e em avanço cultural diante das civilizações meridionais negras, sedentárias e agrícolas. Sua válvula de segurança consistiu na ereção e no desenvolvimento da teoria do supremacismo branco.
Tive a oportunidade de formalizar a sugestão de Fernando Góes e Guerreiro Ramos quando propus em um seminário que estava ministrando na Universidade de Ifé que os africanos deveriam promover um Congresso Internacional para estudar os brancos da Europa e seu prolongamento arianóide no Brasil. A ciência negro-africana examinaria o fenômeno mental e psiquiátrico que motivou os europeus a escravizarem outros seres humanos, seus irmãos, com uma brutalidade sádica sem precedentes na história dos homens. Escrutinaria, a ciência negra, em suas origens psiconeurológicas e psicocriminológicas, a necessidade emocional que leva o branco a tentar justificar seus atos de assassínio, tortura, pilhagem, roubo e estupro com fantasias absurdas denominadas, por exemplo, de "carga do homem branco", "destino manifesto", "civilizar os selvagens", "cristianizar os pagãos", "filantropia", "imperativo econômico", "miscigenação", "democracia racial", "assimilação" e outras metáforas que não conseguem ocultar os sintomas que denunciam uma mórbida compulsão cultivada por uma civilização de fundamentos decididamente patológicos. Anotaria a ciência negra as dimensões e o peso da massa encefálica bem como a forma craniana dos brancos para averiguar qual a motivação que os conduz a roubar os tesouros artísticos de outros povos e depois, arrogante e obstinadamente, recusar a devolvê-los, mesmo em se tratando de uma celebração cultural e artística daqueles povos, conforme exemplifica a atitude do governo britânico se negando a ceder à Nigéria uma máscara-símbolo do Festac 1977, e mantendo-a trancada em seu museu de Londres. Trata-se, evidentemente, de uma peça de alto valor artístico e histórico, criada pelos nossos antepassados nigerianos.
De um ponto de vista psiquiátrico, se analisariam as atitudes formais, mecânicas, destituídas de emoção que os europeus e seus imitadores demonstram durante seus cultos religiosos. Este comportamento, sob uma perspectiva antropológica e psicológica, denuncia uma profunda ausência de identidade e vinculação com os seus deuses, além de uma carência de contato espiritual mais íntimo. Estudaria ainda, a partir de uma visão sociológica e etnológica, a natureza singularmente desumanizada e mecânica da sociedade euro-norte-americana, cuja última façanha, frio resultado de sua "objetividade", é a invenção de armas destrutivas capazes de obliterar toda a raça humana. Investigaria as origens da avareza mórbida que a leva a envenenar o seu próprio suprimento alimentar e o do resto do mundo com químicas, tinturas e preservativos, numa patética "eficiência" em busca de mais lucros. E nessa diabólica manipulação gananciosa, a destruir de forma insensível milhões de toneladas de alimentos, ou sacrificar no altar do desperdício farto outros milhões de cabeças de gado anualmente. Não são os povos da África, das Américas ou da Ásia os autores de tais absurdos. Estes alimentariam os seus filhos com aqueles produtos se isso lhes fosse possível.
Um estudo desse porte teria de considerar cuidadosamente os mecanismos inconscientes, conscientes, e outros, que induziram os europeus a se apropriarem de todo o patrimônio da civilização negro-africana do Egito antigo, e, utilizando-se da falsificação acadêmica, tentar erradicar a identidade do povo egípcio daquela época, para em seguida negar ao Egito negro as ciências, as artes, a filosofia, a religião que ele criou, atribuindo à Grécia o seu patrimônio de saber.
É imperativo compreender e reconhecer que a experiência histórica dos africanos na diáspora tem sido uma experiência de conteúdo essencialmente racista, que transcende certas simplificações segundo as quais a escravidão e as subseqüentes formas de opressão racista dos povos negros são apenas subprodutos do capitalismo. Assim, a escravização dos africanos e a desumanização dos seus descendentes nas Américas teriam ocorrido e estariam ocorrendo como um determinismo inarredável do processo econômico da humanidade, o qual teria engendrado a escravidão à base da "necessidade" do sistema de produção. Falam de sistema demonstrando uma devoção beata a algo supostamente sublime, etéreo e intangível. A "necessidade" dos europeus teria caído sobre nossas cabeças e nossos destinos qual desígnio irrecorrível de Deus ou das potências cósmicas. Não menciona, tal racionalização, que o sistema só tem existência porque está incorporado em seres humanos com as suas motivações, aspirações, interesses e projetos. Sob a perspectiva humana da sociedade ocidental, têm sido o racismo e seus derivados - o chauvinismo cultural, o preconceito e a discriminação racial e de cor - os elementos operativos no dilema existencial dos povos negros.
Em nosso país, os interesses econômicos, a ambição, o orgulho, o medo, a arrogância se complementam e desempenham a parte respectiva que lhes cabe no sentido de complicar ainda mais a teia que emaranha e obscurece a realidade do racismo vigente. Uma pergunta então é necessária: seria o racismo apenas um orgulho do branco que se expressa nessa qualidade de sentimento racial de desdém e menosprezo para com o negro, sentimento que às vezes toma a forma abstrata do preconceito, outras vezes atua objetiva e concretamente na forma de discriminação de caráter racial? Estas são na verdade expressões ou partes do racismo. Este, contudo, é mais abrangente: o racismo do tipo praticado entre nós é a imposição de uma minoria de origem branco-européia sobre uma maioria negra de origem africana. Para atingir seus intentos, essa minoria adota as mais variadas estratégias, as quais incluem desde os instrumentos mais óbvios aos mais sofisticados e despistadores. Tanto se faz uso da violência policial direta e brutal, quanto da violência ideológica sutil, ou da violência econômica, que é uma forma de genocídio físico e espiritual. Todas as formas imagináveis de coação se praticaram e se praticam, inclusive a violência religiosa, no afã de assegurar a imposição do etnocentrismo ocidental sobre os afro-brasileiros. A elaboração da chamada "democracia racial" obedeceu à intenção de disfarçar os privilégios do segmento minoritário, detentor exclusivo da renda do país e do poder político nacional. Fique registrado que muitos brancos íntegros são ofuscados pela maligna fosforescência da "democracia racial" e se comportam diante da população negra da maneira tradicional do racista brasileiro: com postura paternalista.
ABC do quilombismo
Na trajetória histórica que esquematizamos nestas páginas, o quilombismo tem nos fornecido várias lições. Tentaremos resumi-las num ABC fundamental que nos ensina que:
a) Autoritarismo de quase 500 anos já é bastante. Não podemos, não
devemos e não queremos tolerá-lo por mais tempo. Sabemos de experiência própria que uma das práticas desse autoritarismo é o desrespeito brutal da polícia às famílias negras. Toda a sorte de arbitrariedade policial se acha fixada nas batidas que ela faz rotineiramente para manter aterrorizada e desmoralizada a comunidade afro-brasileira. Assim fica confirmada, diante dos olhos dos próprios negros, sua condição de impotência e inferioridade, já que são incapazes até mesmo de se autodefenderem ou de proteger sua família e os membros de sua respectiva comunidade. Trata-se de um estado de humilhação permanente.
b) Banto denomina-se um povo ao qual pertenceram os primeiros
africanos escravizados que vieram para o Brasil de países que hoje se chamam Angola, Congo, Zaire, Moçambique e outros. Foram os bantos os primeiros quilombolas a enfrentar em terras brasileiras o poder militar do branco escravizador.
c) Cuidar em organizar a nossa luta por nós mesmos é um imperativo
da nossa sobrevivência como um povo. Devemos por isso ter muito cuidado ao fazer alianças com outras forças políticas, sejam as ditas revolucionárias, reformistas, radicais, progressistas ou liberais. Toda e qualquer aliança deve obedecer a um interesse tático ou estratégico, e o negro precisa obrigatoriamente ter poder de decisão, a fim de não permitir que a comunidade negra seja manipulada por interesses de causas alheias à sua própria.
d) Devemos ampliar sempre a nossa frente de luta, tendo em vista: 1)
os objetivos mais distantes da transformação radical das estruturas sócio-econômicas e culturais da sociedade brasileira; 2) os interesses táticos imediatos. Nestes últimos se inclui o voto do analfabeto e a anistia aos prisioneiros políticos negros. Os prisioneiros políticos negros são aqueles que são maliciosamente fichados pela polícia como desocupados, vadios, malandros, marginais, e cujos lares são freqüentemente invadidos.
e) Ewe ou gêge, povo africano de Gana, Togo e Daomé (Benin); milhões de ewes foram escravizados no Brasil. Eles são parte do nosso povo e da nossa cultura afro-brasileira.
Ejetar o supremacismo branco do nosso meio é um dever de todo democrata. Devemos ter sempre presente que o racismo, isto é, supremacismo branco, preconceito de cor e discriminação racial, compõem o fator raça, a primeira contradição para a população de origem africana na sociedade brasileira. (Aviso aos intrigantes, aos maliciosos, aos apressados em julgar: o vocábulo raça, no sentido aqui empregado, se define somente em termos de história e cultura, e não em pureza biológica).
f) Formar os quadros do quilombismo é tão importante quanto a mobilização e a organização da comunidade negra.
g) Garantir ao povo trabalhador negro o seu lugar na hierarquia de Poder e Decisão, mantendo a sua integridade etno-cultural, é a motivação básica do quilombismo.
h) Humilhados que fomos e somos todos os negro-africanos, com todos devemos manter íntimo contato. Também com organizações africanas independentes, tanto da diáspora como do continente. São importantes e necessárias as relações com órgãos e instituições internacionais de Direitos Humanos, tais como a ONU e a UNESCO, de onde poderemos receber apoio em casos de repressão. Nunca esquecer que sempre estivemos sob a violência da oligarquia latifundiária, industrial-financeira ou militar.
i) Infalível como um fenômeno da natureza será a perseguição do poder branco ao quilombismo. Está na lógica inflexível do racismo brasileiro jamais permitir qualquer movimento libertário dos negros majoritários. Nossa existência física é uma realidade que jamais pôde ser obliterada, nem mesmo pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ao manipular os dados censitários, nos quais erradicou o fator racial e de cor dos cômputos demográficos. E quanto a nosso peso político? Simplesmente não existe. Desde a proclamação da República, a exclusão do voto ao analfabeto significa na prática a exclusão da população negra do processo político do país.
j) Jamais as organizações políticas dos afro-brasileiros deverão permitir o acesso aos brancos não-quilombistas a posições com autoridade para obstruir a ação ou influenciar as tomadas de posição teóricas e práticas em face da luta.
k) Kimbundo, língua do povo banto, veio para o Brasil com os escravos procedentes da África meridional. Essa língua exerceu notável influência sobre o português falado neste país.
l) Livrar o Brasil da industrialização artificial, tipo "milagre econômico", está nas metas do quilombismo. Neste esquema de industrialização, o negro é explorado a um tempo pelo capitalista industrial e pela classe trabalhadora classificada ou "qualificada". Como trabalhador "desqualificado" ou sem classe, ele é duplamente vítima: da raça (branca) e da classe (trabalhadora "qualificada" e/ou burguesia de qualquer raça). O quilombismo advoga para o Brasil um conhecimento científico e técnico que possibilite a genuína industrialização que represente um novo avanço de autonomia nacional. O quilombismo não aceita que se entregue a nossa reserva mineral e a nossa economia às corporações monopolistas internacionais, porém tampouco defende os interesses de uma burguesia nacional. O negro-africano foi o primeiro e o principal artífice da formação econômica do País e a riqueza nacional pertence a ele e a todo o povo brasileiro que a produz.
m) Mancha branca é o que significa a imposição miscigenadora do branco, implícita na ideologia do branqueamento, na política imigratória, no mito da "democracia racial". Tudo não passa de racionalização do supremacismo branco e do estupro histórico e atual que se pratica contra a mulher negra.
n) Nada de mais confusões: se no Brasil efetivamente houvesse igualdade de tratamento, de oportunidades, de respeito, de poder político e econômico; se o encontro entre pessoas de raças diferentes ocorresse espontâneo e livre da pressão do poder e prestígio sócio-econômico do branco; se não houvesse outros condicionamentos repressivos de caráter moral, estético e cultural, a miscigenação seria um acontecimento positivo, capaz de enriquecer o brasileiro, a sociedade, a cultura e a humanidade das pessoas.
o) Obstar o ensinamento e a prática genocidas do supremacismo branco é um fator substantivo do quilombismo.
p) Poder quilombista quer dizer: a Raça Negra no Poder. Os descendentes de africanos somam a maioria da nossa população. Portanto, o Poder Negro será um poder democrático. (Reitero aqui a advertência aos intrigantes, aos maliciosos, aos ignorantes, aos racistas: neste livro a palavra raça tem exclusiva acepção histórico-cultural. Raça biologicamente pura não existe e nunca existiu).
q) Quebrar a eficácia de certos slogans que atravessam a nossa ação contra o racismo, como aquele da luta única de todos os trabalhadores, de todo o povo ou de todos os oprimidos, é um dever do quilombista. Os privilégios raciais do branco em detrimento do negro constituem uma ideologia que vem desde o mundo antigo. A pregação da luta "única" ou "unida" não passa de outra face do desprezo que nos votam, já que não respeitam a nossa identidade e nem a especificidade do nosso problema e do nosso esforço em resolvê-lo.
r) Raça: acreditamos que todos os seres humanos pertencem à mesma espécie. Para o quilombismo, raça significa um grupo humano que possui, relativamente, idênticas características somáticas, resultantes de um complexo de fatores históricos e ambientais. Tanto a aparência física, como igualmente os traços psicológicos, de personalidade, de caráter e emotividade, sofrem a influência daquele complexo de fatores onde se somam e se complementam a genética, a sociedade, a cultura, o meio geográfico, a história. O cruzamento de diferentes grupos raciais, ou de pessoas de identidade racial diversas, está na linha dos mais legítimos interesses de sobrevivência da espécie humana.
Racismo: é a crença na inerente superioridade de uma raça sobre outra. Tal superioridade é concebida tanto no aspecto biológico, como na dimensão psico-sócio-cultural. Esta é a dimensão usualmente negligenciada ou omitida nas definições tradicionais do racismo. A elaboração teórico-científica produzida pela cultura branco-européia justificando a escravização e a inferiorização dos povos africanos constitui o exemplo eminente do racismo sem precedentes na história da humanidade.
Racismo é a primeira contradição social no caminho do negro. A esta se juntam outras, como a contradição de classes e de sexo.
s) Swahili é uma língua de origem banta, influenciada por outros idiomas, especialmente o árabe. Atualmente, o swahili é falado por mais de 20 milhões de africanos da Tanzânia, do Quênia, de Uganda, do Burundi, do Zaire, e de outros países. Os afro-brasileiros necessitam aprendê-la com urgência.
Slogan do poder público e da sociedade dominante, no Brasil, condenando reiterada e indignadamente o racismo, se tornou um recurso eficaz encobrindo a operação racista e discriminatória sistemática, de um lado, e de outro lado servindo como uma arma apontada contra nós com a finalidade de atemorizar-nos, amortecendo ou impedindo que um movimento coeso do povo afro-brasileiro obtenha a sua total libertação.
t) Todo negro ou mulato (afro-brasileiro) que aceita a "democracia racial" como uma realidade, e a miscigenação na forma vigente como positiva, está traindo a si mesmo, e se considerando um ser inferior.
u) Unanimidade é algo impossível no campo social e político. Não devemos perder o nosso tempo e a nossa energia com as críticas vindas de fora do movimento quilombista. Temos de nos preocupar e criticar a nós próprios e às nossas organizações, no sentido de ampliar a nossa consciência negra e quilombista rumo ao objetivo final: a ascensão do povo afro-brasileiro ao Poder.
v) Vênia é o que não precisamos pedir às classes dominantes para reconquistarmos os frutos do trabalho realizado pelos nossos ancestrais africanos no Brasil. Nem devemos aceitar ou assumir certas definições, "científicas" ou não, que pretendem situar o comunalismo africano e o ujamaaísmo como simples formas arcaicas de organização econômica e/ou social. Esta é outra arrogância de fundo eurocentrista que implicitamente nega às instituições nascidas na realidade histórica da África a capacidade intrínseca de desenvolvimento autônomo relativo. Nega a tais instituições a possibilidade de progresso e atualização, admitindo que a ocupação colonizadora do Continente Africano pelos europeus determinasse o concomitante desaparecimento dos valores, princípios e instituições africanas. Estas corporificariam formas não-dinâmicas, exclusivamente quietistas e imobilizadas. Tal visão petrificada da África e de suas culturas é uma ficção puramente cerebral. O quilombismo pretende resgatar dessa definição negativista o sentido de organização sócio-econômica concebido para servir à existência humana; organização que existiu na África e que os africanos escravizados trouxeram e praticaram no Brasil. A sociedade brasileira contemporânea pode se beneficiar com o projeto do quilombismo, uma alternativa nacional que se oferece em substituição ao sistema desumano do capitalismo.
x) Xingar não basta. Precisamos é de mobilização e de organização da gente negra, e de uma luta enérgica, sem pausa e sem descanso, contra as destituições que nos atingem. Até que ponto vamos assistir impotentes à cruel exterminação dos nossos irmãos e irmãs afro-brasileiros, principalmente das crianças negras deste país?
y) Yorubás (Nagô) somos também em nossa africanidade brasileira. Os iorubás são parte integrante do nosso povo, da nossa cultura, da nossa religião, da nossa luta e do nosso futuro.
z) Zumbi: fundador do quilombismo.

Propostas de ação para o Governo Brasileiro
O programa de ação quilombista incorpora, devidamente atualizadas, as seguintes propostas apresentadas por este autor ao Colóquio do 2º Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas (Festac), realizado em Lagos, Nigéria, em 1977 (Nascimento, 1978, 2002). Naquela ocasião, o autor propôs ao Colóquio recomendar que o Governo Brasileiro
1) permita e estimule a livre e aberta discussão dos problemas dos descendentes de africanos no país; e que encoraje e financie pesquisas sobre a posição econômica, social e cultural ocupada pelos afro-brasileiros dentro da sociedade brasileira, em todos os níveis;
2) localize e publique documentos e outros fatos e informações possivelmente existentes em arquivos privados, cartórios, arquivos de câmara municipal de velhas cidades do interior, referentes ao tráfico negreiro, à escravidão e à abolição; em resumo, qualquer dado que possa ajudar a esclarecer e aprofundar a compreensão da experiência do africano escravizado e de seus descendentes;
3) inclua quesitos sobre raça ou etnia em todos os futuros censos demográficos; que em toda informação que dito governo divulgue, tanto para consumo doméstico como internacional a respeito da composição demográfica do país, não se omita o aspecto da origem racial / étnica;
4) inclua um ativo e compulsório currículo sobre a história e as culturas dos povos africanos, tanto aqueles do continente como os da diáspora; tal currículo deve abranger todos os níveis do sistema educativo: elementar, médio e superior;
5) tome medidas ativas para promover o ensino e o uso prático de línguas africanas, especialmente as línguas ki-swahili e iorubá; o mesmo em relação aos sistemas religiosos africanos e seus fundamentos artísticos; que o dito governo promova válidos programas de intercâmbio cultural com as nações africanas;
6) estude e formule compensações aos afro-brasileiros pelos séculos de escravização criminosa e decênios de discriminação racial depois da abolição; para esse fim deverá drenar recursos financeiros e outros, compulsoriamente originados da Agricultura, do Comércio e da Indústria, setores que historicamente têm sido beneficiados com a exploração do povo negro. Tais recursos constituirão um fundo destinado à construção de moradias, que satisfaçam às exigências da condição humana, em substituição às atuais habitações segregadas onde vive a maioria dos afro-brasileiros: favelas, cortiços, mocambos, porões, cabeças-de-porco, e assim por diante. O fundo sustentaria também a distribuição de terras no interior do país para os negros engajados na produção agropecuária;
7) remova os objetos da arte afro-brasileira assim como os de sentido ritual encontrados hoje em instituições de polícia, de psiquiatria, história e etnografia; e que o dito governo estabeleça museus de arte com finalidade dinâmica e pedagógica de valorização e respeito devidos à cultura afro-brasileira; de preferência, tais museus se localizariam nos estados com significativa população negra, tais como Bahia, Maranhão, Pernambuco, Alagoas, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Sergipe, Rio Grande do Sul;
8) conceda efetivo apoio, material e financeiro, à existentes e futuras associações afro-brasileiras com finalidade de pesquisa, informação e divulgação nos setores de educação, arte, cultura e posição sócio-econômica da população afro-brasileira.
9) tome medidas rigorosas e apropriadas ao efetivo cumprimento da lei Afonso Arinos, fazendo cessar o papel burlesco que tem desempenhado até agora;
10) tome ativas providências, ajuste as realidades do país, para que de nenhuma forma se permita ou possibilite a discriminação racial ou de cor no emprego, garantindo a igualdade de oportunidade que atualmente inexiste entre brancos, negros e outras nuanças étnicas.
11) exerça seu poder através de uma justa política de redistribuição da renda, tornando impraticável que, por causa da profunda desigualdade econômica imperante, o afro-brasileiro seja discriminado, embora sutil e indiretamente, em qualquer nível do sistema educativo, seja o elementar, o médio ou o universitário.
12) estimule ativamente o ingresso de negros no Instituto Rio Branco, órgão de formação de diplomatas pertencente ao Ministério de Relações Exteriores.
13) nomeie negros para o cargo de embaixador e diplomata para as Nações Unidas e junto aos Governos de outros países do mundo.
14) estimule a formação de negros como oficiais superiores das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) com promoções no serviço ativo até os postos de general, almirante, brigadeiro e marechal.
15) nomeie negros para os altos escalões do Governo Federal em seus vários ministérios e outras repartições do Executivo, incluindo órgãos superiores como o Conselho Federal de Cultura, o Conselho Federal de Educação, o Conselho de Segurança Nacional, o Tribunal de Contas.
16) estimule e encoraja a formação e o desenvolvimento de uma liderança política negra, representando os interesses específicos da população afro-brasileira no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, nas Assembléias Legislativas Estaduais e nas Câmaras Municipais; que o dito Governo nomeie negros para os cargos de juizes estaduais e federais, inclusive para o Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal Eleitoral, Superior Tribunal Militar, Superior Tribunal do Trabalho e o Tribunal Federal de Recursos.
17) concretize sua tão proclamada "amizade" com a África independente e sua tão freqüentemente manifestada posição anticolonialista, dando efetivo apoio diplomático e material aos legítimos movimentos de libertação nacional de Zimbabwe, Namíbia e África do Sul.

Alguns princípios e propósitos do quilombismo
1. O Quilombismo é um movimento político dos negros brasileiros, objetivando a implantação de um Estado Nacional Quilombista, inspirado no modelo da República dos Palmares, no século XVI, e em outros quilombos que existiram e existem no País.
2. O Estado Nacional Quilombista tem sua base numa sociedade livre, justa, igualitária e soberana. O igualitarismo democrática quilombista é compreendido no tocante a sexo, sociedade, religião, política, justiça, educação, cultura, condição racial, situação econômica, enfim, todas as expressões da vida em sociedade. O mesmo igualitarismo se aplica a todos os níveis do Poder e de instituições públicas e privadas.
3. A finalidade básica do Estado Nacional Quilombista é a de promover a felicidade do ser humano. Para atingir sua finalidade, o quilombismo acredita numa economia de base comunitário-cooperativista no setor da produção, da distribuição e da divisão dos resultados do trabalho coletivo.
4. O quilombismo considera a terra uma propriedade nacional de uso coletivo. As fábricas e outras instalações industriais, assim como todos os bens e instrumentos de produção, da mesma forma que a terra, são de propriedade e uso coletivo da sociedade. Os trabalhadores rurais ou camponeses trabalham a terra e são eles próprios os dirigentes das instituições agropecuárias. Os operários da indústria e os trabalhadores de modo geral são os produtores dos objetos industriais e os únicos responsáveis pela orientação e gerência de suas respectivas unidades de produção.
5. No quilombismo o trabalho é um direito e uma obrigação social, e os trabalhadores, que criam a riqueza agrícola e industrial da sociedade quilombista, são os únicos donos do produto do seu trabalho.
6. A criança negra tem sido a vítima predileta e indefesa da miséria material e moral imposta à comunidade afro-brasileira. Por isso, ela constitui a preocupação urgente e prioritária do quilombismo. Atendimento pré-natal, amparo à maternidade, creches, alimentação adequada, moradia higiênica e humana, são alguns dos itens relacionados à criança negra que figuram no programa de ação do movimento quilombista.
7. A educação e o ensino em todos os graus - elementar, médio e superior - serão completamente gratuitos e abertos sem distinção a todos os membros da sociedade quilombista. A história da África, das culturas, das civilizações e das artes africanas terão um lugar eminente nos currículos escolares. Criar uma Universidade Afro-Brasileira é uma necessidade dentro do programa quilombista.
8. Visando o quilombismo a fundação de uma sociedade criativa, ele procurará estimular todas as potencialidades do ser humano e sua plena realização. Combater o embrutecimento causado pelo hábito, pela miséria, pela mecanização da existência e pela burocratização das relações humanas e sociais, é um ponto fundamental. As artes em geral ocuparão um espaço básico no sistema educativo e no contexto das atividades sociais.
9. No quilombismo não haverá religiões e religiões populares, isto é, religião da elite e religiões do povo. Todas as religiões merecem igual tratamento de respeito e de garantias de culto.
10. O Estado quilombista proíbe a existência de um aparato burocrático estatal que perturbe ou interfira com a mobilidade vertical das classes trabalhadoras e marginalizadas em relação direta com os dirigentes. Na relação dialética dos membros da sociedade com as suas instituições repousa o sentido progressista e dinâmico do quilombismo.
11. A revolução quilombista é fundamentalmente anti-racista, anticapitalista, antilatifundiária, antiimperialista e antineocolonialista.
12. Em todos os órgãos do Poder do Estado Quilombista - Legislativo, Executivo e Judiciário - a metade dos cargos de confiança, dos cargos eletivos, ou dos cargos por nomeação, deverão, por imperativo constitucional, ser ocupados por mulheres. O mesmo se aplica a todo e qualquer setor ou instituição de serviço público.
13. O quilombismo considera a transformação das relações de produção, e da sociedade de modo geral, por meios não-violentos e democráticos, uma via possível.
14. É matéria urgente para o quilombismo a organização de uma instituição econômico-financeira em moldes cooperativos, capaz de assegurar a manutenção e a expansão da luta quilombista a salvo das interferências controladoras do paternalismo ou das pressões do Poder econômico.
15. O quilombismo essencialmente é um defensor da existência humana e, como tal, ele se coloca contra a poluição ecológica e favorece todas as formas de melhoramento ambiental que possam assegurar uma vida saudável para as crianças, as mulheres e os homens, os animais, as criaturas do mar, as plantas, as selvas, as pedras e todas as manifestações da natureza.
16. O Brasil é signatário da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1965. No sentido de cooperar para a concretização de objetivos tão elevados e generosos, e tendo em vista o artigo 9, números 1 e 2 da referida Convenção, o quilombismo contribuirá para a pesquisa e a elaboração de um relatório ou dossiê bianual, abrangendo todos os fatos relativos à discriminação racial ocorridos no País, a fim de auxiliar os trabalhos do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas.

Semana da memória afro-brasileira
Esta Semana está sendo proposta pela necessidade do negro de recuperar a sua memória. Durante esta Semana serão focalizados e iluminados os sucessos passados nos quais foram protagonistas aqueles 300 milhões de africanos retirados, sob violência, de suas terras e trazidos acorrentados para o continente americano. Através de celebrações anuais, a comunidade negra não só honrará os antepassados, como reforçará a sua coesão e identidade. E transmitirá às novas gerações um exemplo de amor à história do nosso povo, auxiliando-as a ter uma visão mais clara e verdadeira do papel fundamental cumprido pelos escravos africanos na construção deste País. Isto só infundirá aos jovens de agora e do futuro um orgulho em lugar da vergonha que a sociedade dominante tem procurado infiltrar na consciência dos negros, como se fosse a única herança deixada por seus ancestrais.
A Semana deve aliar aos aspectos comemorativos uma constante pesquisa, crítica e reflexão sobre o passado e o presente das condições de vida da população de origem africana no Brasil. Isto contribuirá para ampliar e fortalecer o quilombismo sem sua filosofia, teoria e prática de libertação. A Semana implica também um estímulo às organizações negras existentes, sem discriminar nenhuma delas por causa dos seus objetivos declarados. Tanto aquelas que perseguem finalidades recreativas ou beneficentes, como as outras de sentido cultural, social ou político, se encontram todas interessadas no destino e na melhoria da situação da família afro-brasileira. Portanto, se inserem na mesma perspectiva quilombista ampla que estamos tentando sistematizar.
Basicamente, esta "Semana da Memória" está sendo concebida como uma ferramenta operativa no campo da ação (mobilização e organização), combinada ao setor da especulação, da teoria, da formulação de princípios, das análises, definições e outras ponderações. Enfim, a Semana deve ser um exercício de emancipação e nunca uma comemoração convencional, estática e retórica, que proponha unicamente a evocação de fatos, datas e nomes do passado. Estudar e lembrar os feitos dos antepassados deve constituir um acontecimento inspirador que estimule a ação transformadora do presente. Rumo ao futuro, ou seja, o oposto da contemplação saudosista, autoglorificadora do pretérito, ou da motivação de cenas de autoflagelação.
Resgatar nossa memória significa resgatarmos a nós mesmos do esquecimento, do nada e da negação, e reafirmarmos a nossa presença ativa na história pan-africana e na realidade universal do seres humanos.
Como norma de procedimento, a Semana deve ser promovida, de preferência, por organizações afro-brasileiras. Entretanto, poderá também ser realizada por escolas públicas ou privadas que atualmente se interessem pelo progresso cívico da comunidade afro-brasileira. Neste caso, como de modo geral tais escolas não são dirigidas por homem negro ou mulher negra, os afro-brasileiros presentes devem estar alertas a fim de impedir que os fatos históricos e os eventos da vida negro-africana sejam manipulados ou distorcidos, seja por malícia, ignorância ou negligência. As famílias negras, onde não existir organização afro-brasileira ou escola pública ou privada interessada na vida negra, devem preencher o papel de realizadores da Semana. Reiteramos que uma Semana da Memória jamais deve esvaziar o seu conteúdo intrínseco de valores negro-africanos de história, cultura, artes, seccionando-o do contexto sócio-político e econômico onde os povos de origem africana se movimentaram, produziram, lutaram e fizeram a história que até o presente não figura, em toda a sua extensão e importância, na História convencional ou oficial do Brasil.
A proposta que ofereço à consideração dos meus irmãos e irmãs negros de "Semana da Memória" tem seu encerramento a 20 de novembro de cada ano, aniversário da morte de Zumbi e Dia Nacional da Consciência Negra instituído pelo movimento negro brasileiro a partir de proposta oriunda do Rio Grande do Sul. Assim, a Semana principia a 14 de novembro e obedecerá ao seguinte calendário:
Dia 14 (1º dia): África: suas civilizações na antigüidade, o Egito, a Etiópia, o Sudão. Os impérios mais recentes: Songai, Asante, Iorubá, e outros. Nesta celebração se incluem referências às formas de organização africana da família (matriarcado), sociedade, economia e do Estado. As artes, as ciências, a tecnologia: as pirâmides egípcias, a matemática, a engenharia, a medicina, as pinturas rupestres e as construções urbanas em Zimbábue, as esculturas de Nok, Ifé, Benin, e assim por diante.
Dia 15 (2º dia): As primeiras incursões portuguesas no território africano no século XIV. Logo depois, a invasão colonial da África por Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Holanda, Bélgica, Itália, Alemanha. A escravização dos africanos: as técnicas de captura utilizadas pelos bandidos europeus. As longas caminhadas através das florestas até à costa atlântica. A enorme taxa de mortalidade durante o trajeto. Os barracões e depósitos na costa. O batismo compulsório.
Dia 16 (3º dia): O embarque dos africanos nos tumbeiros: os horrores a bordo: fome, sede, epidemias, imobilidade do corpo, falta de ar; a alta taxa de mortalidade; os africanos atirados vivos ao mar; outras formas de suplício e assassínio. Os portos brasileiros de desembarque.
Dia 17 (4º dia): Os mercados de escravos; maneira como as "peças" eram oferecidas ao público comprador, e os brancos examinavam os africanos como se fossem animais. As vendas e as compras atendendo os pontos focais de concentração econômica: produção do açúcar, do algodão, da mineração, do café, do cacau, do gado, do fumo, e assim por diante.
Dia 18 (5º dia): Vida escrava, rural e urbana. Os castigos e os instrumentos de tortura. O estupro da mulher africana. A imposição religiosa católica. A persistência das danças, cantos, instrumentos musicais e folguedos trazidos da África pelos escravos. As religiões africanas e as línguas faladas pelos escravos. Formas de recusa à escravidão: suicídio, banzo, fuga, assassínio do senhor, e outras.
Dia 19 (6º dia): As revoltas e os quilombos. O papel dos valores africanos da resistência: religião, arte, folclores, conhecimentos técnicos de fundição do ferro, do bronze, de agricultura. A importância na resistência de instituições religiosas a exemplo da Casa das Minas (Maranhão), do Axé do Opô Afonjá (Bahia). Papel das instituições laicas após a abolição: Frente Negra Brasileira, Teatro Experimental do Negro, União dos Homens de Cor, Associação Cultural dos Negros, Floresta Aurora, e todas as outras organizações negras que existiram e existem.
Dia 20 (7º dia): O Dia da Consciência Negra deve resumir tudo aquilo que tiver ocorrido nos dias anteriores. Ênfase à figura de Zumbi, o primeiro militante do pan-africanismo e da luta por liberdade em terras brasileiras. Zumbi, consolidador da luta palmarista, selando com sua morte em plena batalha a determinação libertária do povo negro-africano escravizado, é o fundador, na prática, do conceito científico histórico-cultural do quilombismo. Quilombismo continuado por outros heróis da história negra: Luísa Mahin e seu filho Luís Gama, Chico-Rei, os enforcados da Revolta dos Alfaiates, dos levantes dos Malês, da Balaiada, o Dragão do Mar, Karocango, João Cândido, e os milhões de quilombolas assassinados em todas as partes do nosso território onde houve o infame cativeiro. Na celebração de encerramento da Semana da Memória Negra deve-se dar todo o destaque aos programas e projetos das entidades e da comunidade, tendo em vista um futuro melhor para os afro-brasileiros. O último evento da Semana deve, de preferência, acontecer ao ar livre, numa concentração da comunidade negra e das pessoas de qualquer origem interessadas em nossas atividades. Durante todo o decorrer da Semana, a retórica acadêmica deverá ser radicalmente proibida.
Axé, Zumbi!
BIBLIOGRAFIA
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Transcrito do livro O Quilombismo, 2ª ed. (Brasília/ Rio: Fundação Cultural Palmares/ OR Editora, 2002).
http://www.abdias.com.br/movimento_negro/quilombismo.htm